Por Eduardo Muniz M. Cavalcanti
Instituído no final da década de 1990, o Repetro surgiu como um dos principais instrumentos de política fiscal voltados ao desenvolvimento da indústria de petróleo e gás natural no Brasil. Sua história teve origem em um contexto no qual o país buscava a abertura do mercado energético e a atração de investimento estrangeiro.
O regime foi desenhado para permitir a importação de equipamentos, plataformas, peças e insumos destinados à exploração e produção no setor, com a garantia de suspensão de tributos federais como o Imposto de Importação (II), o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e as contribuições ao PIS e à Cofins. Essa política fiscal reduziu o custo de capital e deu previsibilidade a projetos de longo ciclo, viabilizando a expansão das operações offshore e a entrada de novos agentes no setor.
A consolidação normativa do regime acompanhou o amadurecimento da própria cadeia produtiva do setor petrolífero. Sua criação foi viabilizada pela Lei 9.478/1997, a chamada Lei do Petróleo, a qual pôs fim ao monopólio estatal das atividades de exploração e produção de hidrocarbonetos e instituiu o regime de concessões da Agência Nacional do Petróleo (ANP). Essa abertura de mercado criou o ambiente jurídico necessário para o ingresso de novas operadoras privadas e para o desenvolvimento de um modelo fiscal capaz de atrair investimento e tecnologia.
Nesse contexto de abertura de mercado, foi editado o Decreto 3.161/1999, que formalizou o Repetro como regime aduaneiro especial voltado às importações de bens destinados às etapas de pesquisa e lavra. Ao longo da década seguinte, sucessivas normas infralegais aperfeiçoaram o sistema até que o Decreto 6.759/2009 (Regulamento Aduaneiro), incorporou o regime ao seu texto, garantindo a ele estabilidade normativa e disciplinando as hipóteses de admissão, permanência e reexportação de bens vinculados às atividades petrolíferas.
Posteriormente, o Decreto 9.128/2017 modernizou os mecanismos de controle, harmonizou procedimentos e prorrogou sua vigência até o ano de 2040. Essa medida foi essencial para garantir previsibilidade a contratos de exploração de longo prazo.
No mesmo período, a Instrução Normativa RFB 1.781/2017 instituiu o Repetro-Sped, digitalizando obrigações e unificando as modalidades de aplicação (temporária, permanente e mista), enquanto o Decreto 9.537/2018 criou o Repetro-Industrialização, estendendo o tratamento suspensivo a bens produzidos no país e assegurando isonomia entre fornecedores nacionais e estrangeiros, em alinhamento com a política de incentivo ao conteúdo local.
Mais do que um instrumento de desoneração tributária, o Repetro se consolidou como um verdadeiro pilar de política industrial e de neutralidade fiscal aplicada ao setor de óleo e gás. Sua estrutura de suspensão de tributos nas fases de investimento e operação foi concebida para eliminar a cumulatividade e assegurar tratamento neutro entre importações e aquisições no mercado interno, reduzindo o custo de capital e ampliando a viabilidade econômica de projetos de elevado risco tecnológico e geológico.
Essa configuração permitiu a expansão de operações offshore em larga escala, viabilizando a atração de players internacionais e a consolidação de uma cadeia nacional de fornecedores altamente especializada. O regime passou, assim, a representar não apenas um incentivo fiscal, mas uma condição de competitividade sistêmica ao garantir segurança jurídica, previsibilidade e estabilidade tributária em um segmento caracterizado por investimentos de longo ciclo e alto grau de incerteza.
A estabilidade construída ao longo de mais de duas décadas, contudo, passou a ser tensionada pela reestruturação do sistema tributário sobre o consumo, promovida pela Emenda Constitucional 132/2023 e regulamentada pela Lei Complementar 214/2025.
O novo modelo extinguiu cinco tributos (PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS) e instituiu o Imposto sobre Valor Agregado Dual, composto pela Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), de competência federal, e pelo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), de competência estadual e municipal.
Embora inspirado em princípios de simplificação, transparência e neutralidade, o novo arranjo altera de modo substancial a lógica dos regimes especiais de tributação. Ao adotar um sistema baseado em créditos e débitos financeiros, a reforma substitui a multiplicidade de tributos cumulativos por um fluxo único de compensações, o que impõe desafios concretos à manutenção de regimes que operam pela suspensão integral da incidência.
É precisamente nesse ponto que o Repetro encontra seu maior desafio de compatibilização. O regime foi estruturado sob uma lógica de suspensão total de tributos, sem geração de débitos nem de créditos, adequada a um modelo de incidências isoladas e não cumulativas.
O IVA, por sua vez, fundamenta-se em um encadeamento contínuo de operações, nas quais cada débito do fornecedor se converte em crédito para o adquirente, neutralizando o imposto ao longo da cadeia. Quando a incidência é suspensa, como no Repetro, o tributo deixa de ser recolhido, mas o crédito correspondente também não é constituído, interrompendo o fluxo de compensação que sustenta o equilíbrio do sistema.
E é justamente essa incompatibilidade entre o regime suspensivo e a lógica creditícia do IVA que compromete a coerência do sistema e gera insegurança jurídica relevante para contratos de longa duração, que dependem de estabilidade fiscal e de previsibilidade nas regras de compensação.
Essa fricção conceitual ganhou contornos práticos com a edição da Lei Complementar 214/2025, que regulamentou a reforma tributária e manteve expressamente o Repetro em seu texto. O art. 93 da norma assegurou a suspensão de IBS e CBS nas importações e aquisições internas de bens e serviços destinados às atividades de exploração, produção e transporte de petróleo e gás natural até o ano de 2040.
A preservação do regime representou um reconhecimento de sua relevância estratégica, mas não solucionou o problema de fundo: a compatibilização entre o modelo suspensivo e o sistema de créditos e débitos financeiros que caracteriza o IVA dual.
A lei se limitou a reafirmar a desoneração, sem definir os parâmetros de integração operacional entre o Repetro e o novo regime de compensação tributária. Sem detalhamento técnico, a neutralidade tende a ser apenas aparente, haja vista o benefício nominal ser mantido, mas o crédito correspondente deixa de ser formado, afetando o fluxo financeiro das empresas e comprometendo o equilíbrio econômico de contratos de longo prazo.
A indefinição normativa também alcança a isonomia entre bens nacionais e importados. O Repetro-Industrialização foi concebido para garantir tratamento fiscal equitativo e preservar a competitividade da indústria local, assegurando que fornecedores brasileiros e estrangeiros competissem em condições semelhantes.
Contudo, o novo modelo de tributação ainda não deixou claro se essa paridade será mantida. Caso a suspensão seja restrita apenas às importações, a produção doméstica de equipamentos e componentes perderá atratividade, afrontando o princípio da neutralidade fiscal proposto pela reforma e em desacordo com a política de fomento ao conteúdo nacional que o país consolidou nas últimas décadas. Em um setor de capital intensivo e retornos de longo prazo, qualquer incerteza sobre o tratamento tributário de insumos nacionais tende a reduzir investimentos e fragilizar o ecossistema produtivo construído em torno da cadeia petrolífera.
Outro ponto relevante neste contexto é a criação do Imposto Seletivo, introduzido pela própria Emenda Constitucional 132/2023 para incidir sobre bens e serviços considerados prejudiciais à saúde e ao meio ambiente. Embora tenha sido limitada a alíquota máxima de 1% para o setor extrativista, o texto constitucional não definiu com precisão quais operações comporão sua base de incidência.
Essa lacuna normativa gera preocupação especial para o setor, uma vez que a amplitude da norma poderá determinar se a tributação assumirá caráter meramente regulatório ou se será convertida em um novo fator de oneração econômica.
Caso combustíveis fósseis, derivados ou operações de afretamento venham a ser abrangidos de forma ampla, o resultado será um acréscimo indireto da carga tributária e, por consequência, o desequilíbrio econômico-financeiro de contratos estruturados sob a lógica da neutralidade fiscal assegurada pelo Repetro. Além de contrariar o princípio da segurança jurídica, tal cenário reduziria a previsibilidade que historicamente conferiu estabilidade ao regime e à atratividade do Brasil como destino de investimentos no setor energético.
Esse conjunto de indefinições, tanto quanto à compatibilização do regime com o modelo de crédito financeiro do IVA quanto à abrangência do Imposto Seletivo, evidencia que o desafio central não reside na permanência formal do Repetro, mas em sua integração efetiva ao novo sistema tributário.
O futuro do regime dependerá da capacidade do legislador e dos órgãos de execução fiscal de estabelecerem regras claras e tecnicamente consistentes que assegurem neutralidade plena e previsibilidade aos agentes econômicos.
Sem uma regulamentação detalhada capaz de harmonizar o regime suspensivo com o fluxo de créditos e débitos do IVA dual, a neutralidade prometida pela reforma tributária corre o risco de restringir-se ao plano das ideias. A previsibilidade, que é um elemento estruturante das políticas fiscais voltadas ao investimento produtivo, requer normas complementares que garantam integração operacional, estabilidade regulatória e tratamento uniforme entre os contribuintes.
Somente com essa compatibilização o país conseguirá manter o Repetro como instrumento de segurança jurídica e competitividade internacional, preservando as condições que tornaram o Brasil uma referência global em exploração e produção de petróleo e gás natural.
