Por Bruno Fajersztajn e Júlio M. de Oliveira
A reforma tributária do consumo promete um sistema mais simples, justo e eficiente, tendo sido sua aprovação comemorada pela sociedade. A reforma também resultou na introdução, de forma expressa na Constituição, dos princípios da simplicidade, da transparência, da justiça tributária, da cooperação e da defesa do meio ambiente. Espera-se que o IBS, o Imposto sobre Bens e Serviços, e a CBS, contribuição de igual nome, concretizem esses princípios e tenhamos um sistema que propicie o desenvolvimento do país.
O Projeto de Lei Complementar (PLP) nº 108, de 2024, propõe-se, entre outros temas, a regular as sanções no âmbito da reforma, tendo sido elaborado e aprovado pela Câmara dos Deputados, aguardando, atualmente, aprovação no Senado Federal. O texto aprovado parece completamente desconectado dos objetivos da reforma e, por isso, precisa ser sensivelmente alterado, sob pena de frustração dos anseios da sociedade.
Continuamos na velha máxima ultrapassada de que multas abusivas geram conformidade fiscal. Além disso, se prestigia a cumulação de penas e não são abertos caminhos para uma efetiva relação de cooperação entre o Fisco e a sociedade civil.
As considerações que serão feitas a seguir levam em conta o texto aprovado pela Câmara, muito embora alguns pontos críticos do projeto já tenham sido endereçados no parecer do relator, senador Eduardo Braga (MDB-AM), no âmbito da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado, divulgado nesta semana.
Inicialmente, é curioso notar que o projeto aprovado pela Câmara trata apenas das infrações aplicáveis ao IBS, sem tratar da CBS. No silêncio, à CBS seriam aplicadas as normas gerais previstas para o descumprimento de obrigações relativas aos tributos administrados pela Receita Federal. Teríamos, então, para tributos idênticos, sanções diferentes. É inconcebível que a mesma conduta, que resulta em obrigações relativas a tributos gêmeos, resulte em sanções totalmente distintas. O projeto precisa ser alterado para contemplar a CBS.
Os problemas do PLP 108/24 aprovado pela Câmara vão além. Há pelo menos 39 tipos infracionais no projeto, repetindo-se a fórmula das atuais legislações estaduais e que resultou em grande insegurança jurídica e um enorme contencioso, os quais culminaram no esgotamento do sistema sancionatório atual. De se ressaltar, a incrível quantidade de programas de regularização e acordos (transações) perdoando multas impagáveis.
A proposta vai na contramão de tudo o que a reforma tributária se comprometeu a ser. Uma visão arcaica e policialesca das sanções, o que é impensável no contexto atual, no qual a cooperação consta como princípio constitucional tributário expresso.
Estudo da Fundação Getulio Vargas (FGV) já demonstrou que punições excessivas não geram conformidade, devendo esta ser buscada a partir de cooperação e boa-fé nas relações entre Fisco e contribuintes. É necessário reduzir os tipos infracionais, tornando a legislação de fácil aplicação e compreensão, assim como é necessário ampliar as hipóteses de redução ou exclusão de penalidades em casos de erros escusáveis, de correção da infração e condutas colaborativas.
Não há no texto aprovado previsão de atenuantes ou agravantes de condutas, tampouco disposições que prestigiem o princípio da individualização da pena.
Houve quem tenha comemorado a previsão expressa de que as multas por descumprimento de obrigações acessórias estarão limitadas a 100% do tributo devido. Mas a verdade é que a exigência de multa de 100% para o mero descumprimento de obrigações acessórias ainda se mostra muito excessiva, haja vista a quantidade abusiva de obrigações acessórias, muitas delas exigindo informações já alocadas no sistema noutras oportunidades. Não há o que celebrar!
Ademais, segundo entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no Tema 863, 100% é o limite para as multas por falta de recolhimento de tributo por infração intencional, dolosa. É impositivo que o descumprimento de obrigações acessórias, sem dolo, esteja sujeito a limites muito inferiores. A despeito da importância das obrigações acessórias para o sistema, 100% do valor do tributo, sem a consideração de aspectos individuais da conduta, configura sanção excessiva.
Já o artigo 56 do projeto aprovado na Câmara prevê, de forma anacrônica e despropositada, que “as penalidades serão cumulativas quando resultarem concomitantemente do não cumprimento de obrigação tributária acessória e principal”.
O que será que pretendeu o legislador com uma disposição nesse sentido? A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) vem reconhecendo que não cabe a imposição concomitante de multas, especialmente nas situações em que uma conduta infracional é etapa para o cumprimento de outra infração, aplicando o princípio penal da consunção. Pretende o legislador contornar essa jurisprudência? Sob qual argumento deveria haver tal desvio? O que há de novo e peculiar no IBS que justifique a não aplicação das premissas e preceitos adotados pelo STJ?
Não há nada que justifique tal disposição. Essa disposição, infelizmente já aprovada na Câmara, é inócua, pois a consunção é princípio geral de Direito, de estatura constitucional, decorrente da vedação ao bis in idem. Disposição legal expressa não pode afastar a vedação ao bis in idem e somente vai gerar mais contencioso e instabilidade nas relações entre Fisco e contribuinte. Tudo o que a reforma tributária pretende evitar.
Em suma, em nome de um sistema esperado por todos, é necessário rever por completo as regras sancionatórias do projeto, o que certa forma está sendo endereçado pela Senado Federal. Caso se mantenha um viés fiscalista punitivista, teremos dado uma volta de 360 graus com um custo altíssimo para a sociedade brasileira.
https://valor.globo.com/legislacao/coluna/multas-tributarias-na-reforma-do-consumo.ghtml