Impacto da reforma tributária no fluxo de caixa das empresas

Por Ana Cavallaro

reforma tributária, como esperado, há tempos já está mexendo com o sono dos tributaristas, CFOs e controllers pelo Brasil afora. Entre tantas mudanças estruturais – a criação do IVA através da CBS e IBS, o creditamento financeiro amplo e não cumulativo e o split payment –, uma questão específica tem gerado mais ansiedade que as outras: o creditamento vinculado ao efetivo pagamento do imposto pelo fornecedor.

O que realmente muda na prática

Nos últimos meses, multiplicaram-se artigos e palestras projetando implicações severas: empresas teriam que virar “detetives fiscais” de seus fornecedores, criando sistemas de rating, monitorando certidões negativas 24/7, implementando políticas burocráticas de compliance que fariam inveja às instituições financeiras.

À primeira vista, até faz sentido: se só posso aproveitar o crédito caso o fornecedor tenha recolhido o IVA, então preciso ter certeza de que ele realmente está em dia com o fisco. Caso contrário, haverá imprevisibilidade quanto ao fluxo de caixa. Mas, essa interpretação ignora um detalhe fundamental da lei.

Solução está na própria lei

O artigo 36 da Lei Complementar 214/2025 estabelece algo simples, mas impactante: o adquirente pode efetuar o pagamento do IVA pelo fornecedor. Não é uma faculdade genérica – é um instrumento concreto de gestão financeira e segurança jurídica.

A possibilidade de o adquirente recolher diretamente o IVA pode se tornar um alívio bem-vindo para o caixa das empresas. Na prática, elimina o risco de perder o crédito por inadimplência fiscal do fornecedor, reduz incertezas e dá mais previsibilidade à operação. Além disso, amplia o controle financeiro do adquirente e pode até fortalecer sua posição em negociações comerciais.

Na prática, isso significa que você não fica refém do comportamento fiscal do seu fornecedor. Quer garantir o crédito? Pague o tributo diretamente ao fisco e desconte esse valor da fatura devida ao fornecedor. A segurança jurídica, antes condicionada à boa-fé do fornecedor, passa a ser exercida de forma ativa. Evidentemente, a capacidade de sustentar esse arranjo financeiro dependerá da saúde financeira de cada player.

Para o adquirente, um cenário otimizado seria a negociação de um fluxo de pagamento onde ele próprio se encarregue do recolhimento do IVA no mês de seu vencimento, enquanto o preço líquido do bem ou serviço possa ser parcelado. Essa estratégia oferece a tríade desejável: segurança jurídica e previsibilidade do creditamento, aliadas a uma considerável redução da pressão sobre o fluxo de caixa.

Contudo, é imperativo reconhecer que a força das negociações comerciais – um pilar das relações de mercado existente com ou sem reforma tributária – continuará a depender intrinsicamente do papel e do poder de barganha de cada agente envolvido. Sem dúvida, o mercado, com sua dinâmica própria, se encarregará de regular e equilibrar esse novo cenário.

Atenção, oportuno um alerta crucial: essa estratégia de “pague o IVA, parcele o líquido” não é viável para empresas que já operam rotineiramente com saldo credor mensal, tais como, exportadoras. Para elas, adiantar o IVA na compra significa apenas injetar mais dinheiro em um poço de créditos que já está estancado com o governo.

Fluxo de caixa: o ponto crítico de janeiro de 2026

A partir de janeiro de 2026, a reforma tributária já introduzirá um desafio direto ao fluxo de caixa das empresas. Isso ocorre porque tudo indica que o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) passarão a integrar a base de cálculo do ICMSISS e IPI.

Essa provável inclusão decorre da supressão, pela Câmara dos Deputados, da cláusula expressa de exclusão da base de cálculo, originalmente prevista na PEC 45/19. Em razão disso, tramita o PLP 16/25, que tem como objetivo restabelecer, de forma expressa, a exclusão do IBS e da CBS da base de cálculo do ICMS, ISS e IPI.

Embora, inicialmente, a previsão seja a aplicação de uma alíquota teste conjunta de 1% — vinculada ao cumprimento de obrigações acessórias —, a inclusão “por dentro” do IBS e da CBS na base do ICMS, ISS e IPI resultará, na prática, no aumento da carga tributária efetiva desses três impostos.

Diante desse cenário, as empresas enfrentarão um dilema estratégico crucial: absorver esse incremento, impactando diretamente suas margens de lucro, ou repassá-lo ao cliente, com o risco de comprometer sua competitividade

Planejamento financeiro

Ainda que a legislação contemple medidas para mitigar o impacto no fluxo de caixa, é forçoso reconhecer que a reforma tributária, especialmente no período de transição, inevitavelmente pressionará o capital de giro da maior parte das empresas. Faz-se, portanto, imperativo que outras estratégias de planejamento financeiro sejam prontamente adotadas, entre elas:

  • Gestão para redução de estoque; cada ciclo de estoque encurtado em poucos dias pode resultar ingresso de receitas diretamente no caixa.
  • Reorganizar fluxo de pagamento: alongar pagamento a fornecedores estratégicos e reduzir prazo de recebimento de clientes com políticas de incentivos (desconto, bônus por volume, exclusividade).
  • Quantificar os créditos que podem ser gerados por fornecedores do Simples Nacional para negociar com os estratégicos – incentivando o modelo ‘Por Fora’ ou buscando compensação via reprecificação – ou, em última caso, a substituição.
  • Projeções financeiras para refletir a perda gradual dos incentivos fiscais estaduais para uma análise sobre a manutenção de instalações e a própria razão de ser de negócios que tinham nos aspectos tributários seu principal pilar.
  • Analisar opções para ampliar tomada de créditos: terceirização de atividades; benefícios trabalhistas em convenções coletivas de trabalho.
  • Avaliar o momento ideal para investimentos em ativo imobilizado (CIAP), a considerar o futuro crédito tributário amplo e imediato e a depreciação do sistema atual.
  • Avaliar soluções para antecipação de recebíveis com FDICs ou outros meios a fim de garantir fôlego ao capital de giro.

Muito além do tributário

A reforma tributária não é só uma mudança de modelos tributários. É uma reformulação completa dos modelos de negócio.

Aqui podemos observar que ela exige revisões contratuais, rediscussão dos fluxos de pagamento e uma reorganização das relações comerciais. Negociações com fornecedores ganharão novos contornos – quem paga o quê, quando e como. O setor fiscal e o financeiro, entre outros, passam a caminhar juntos — e a interlocução entre áreas deixa de ser opcional para se tornar estratégica.

Adaptar os negócios a essa nova realidade não é uma opção, é uma questão de sobrevivência e competitividade.

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