No debate sobre a reforma tributária, há uma pauta incômoda que insiste em se manter quase invisível: o destino dos créditos acumulados de ICMS. Para a indústria, esses créditos não são simples números dispersos em relatórios contábeis, e representam recursos concretos, pagos ao estado, mas que permanecem aprisionados em um sistema que raramente devolve o que deve.
As operações interestaduais, os regimes especiais e a complexa engrenagem da substituição tributária criaram, ao longo dos anos, um estoque bilionário de saldos. Agora, com a transição para o IBS, esse ativo corre o risco de perder valor, submetido a um cronograma que, em vez de proteger, dilui o direito creditório.
As regras aprovadas pela Emenda Constitucional 132/2023, regulamentadas pela LC 214/2025, determinam que os créditos existentes até 31 de dezembro de 2032 só poderão ser compensados ou restituídos em até 240 parcelas mensais, ou seja, 20 anos depois, com atualização limitada ao IPCA e apenas a partir de 2033.
É uma postergação que não dialoga com o custo de capital da indústria brasileira. Para qualquer empresário, é como se o Estado tivesse tomado um empréstimo gratuito e, mesmo assim, ainda devolvesse o valor em prestações longas e insuficientes, incapazes de preservar o poder de compra original.
A situação se torna ainda mais delicada devido à exigência de homologação estadual dos créditos. O processo, já conhecido pela morosidade e pela falta de critérios claros, funciona como uma barreira adicional, capaz de inviabilizar a transferência integral desses saldos para o novo sistema. Em muitos casos, a sensação é de que, mesmo cumprindo todas as regras, o contribuinte continua refém da boa vontade do fisco para exercer um direito básico – um risco que se intensifica à medida que a transição se aproxima.
No setor industrial, o problema é ainda mais sensível. A dinâmica das operações interestaduais, combinada com regimes especiais e a substituição tributária, gera créditos que dificilmente encontram débitos correspondentes no mesmo estado. Energia e insumos entram nessa equação, mas não são os protagonistas. O resultado é um estoque de créditos que, embora conste nos balanços, se distancia cada vez mais da realidade do caixa. Para piorar, esses valores continuam compondo a base de cálculo do IRPJ e da CSLL, criando uma tributação sobre lucros que, na prática, nem chegam a se materializar.
Essa distorção corrói diretamente a competitividade da indústria nacional. Empresas que precisam disputar espaço em mercados globais, já sufocadas por custos logísticos elevados e por taxas de financiamento bem acima das praticadas por concorrentes internacionais, não podem arcar com o ônus de ver parte de seu capital retido por décadas. Se nada mudar, o efeito será duplo: de um lado, menor capacidade de reinvestimento; de outro, uma corrida judicial para antecipar a liberação desses créditos, criando ainda mais litígios e insegurança.
Há uma contradição evidente. A reforma tributária nasceu com a promessa de simplificação e neutralidade, mas ao não oferecer uma solução clara para os créditos acumulados, transfere ao contribuinte uma conta que não lhe pertence. Em países que já passaram por reformas semelhantes, a devolução rápida dos saldos credores foi tratada como condição essencial para que o novo sistema funcionasse sem distorções.
No Brasil, a ausência de um mecanismo ágil pode transformar esse capítulo em uma das maiores perdas silenciosas da história fiscal recente.
Não há respostas fáceis, mas o tema exige atenção imediata. Algumas empresas já tentam acelerar a homologação de seus créditos, seja pela via administrativa, seja, quando necessário, por ações judiciais, numa tentativa legítima de preservar o que é seu por direito. Isso não é uma “estratégia oportunista”, mas uma reação direta à incerteza sobre o que acontecerá com valores que, para muitas indústrias, representam anos de operações regulares.
A reforma tributária abre uma nova página na relação entre Estado e contribuinte. Porém, o capítulo dos créditos de ICMS ainda está mal resolvido, e ignorá-lo é assumir o risco de enfraquecer justamente os setores que mais investiram, exportaram e geraram empregos.
A indústria brasileira, que já enfrenta desafios históricos, não pode ser surpreendida por um descompasso dessa magnitude. É preciso encarar essa questão agora, antes que o chamado “estoque invisível” se transforme em uma perda irreversível para todo o setor produtivo.
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