Por Ricardo Soriano, Amanda Loschiavo
Com a proximidade da entrada em vigor das novas regras da reforma tributária e do início do período de transição -previsto já para 2026 – surgem questões ainda incertas e que demandam reflexões críticas.
Uma delas é a discussão acerca do acúmulo de crédito dos tributos não cumulativos até então vigentes. Contribuintes detêm um amplo estoque de créditos de PIS, Cofins e ICMS advindos, por exemplo, da cadeia da exportação, decorrentes de benefícios fiscais ou de indébitos reconhecidos em ações judiciais (v.g., decorrentes da chamada “tese do século” – tema de repercussão geral/STF nº 69), e não terão tempo hábil de compensá-los com os tributos ora existentes.
E o questionamento sobre o que será feito com os créditos após o início da exigência dos novos tributos já tem gerado embate e promete aumentar as indefinições nos próximos anos. Apesar de os dispositivos da nova legislação preverem algumas regras de compensação, o mecanismo não está completamente claro e as incertezas estão longe de serem dirimidas.
Dentre as disposições já contidas no texto, depreende-se que o saldo dos créditos de PIS e Cofins poderá ser compensado com a CBS ou, como já ocorre hoje, com outros tributos federais ou ressarcido em dinheiro[1].
No que tange ao ICMS, que será extinto de vez ao fim de 2032, há previsão na legislação de que, sendo os saldos credores legítimos e devidamente escriturados, poderão ser utilizados para compensação com o IBS, ainda que decorrentes de reconhecimento por ações judiciais[2].
Esses créditos de ICMS deverão ser objeto de pedido de homologação, e a nova legislação prevê, ainda, que os Estados e o Distrito Federal serão informados pelo Comitê Gestor de todas as homologações, para fins de ciência e controle.
A partir daí, então, é que os créditos homologados de ICMS serão compensados com o IBS. O Projeto de Lei Complementar n.º 108 (PLP 108) ainda admite que os créditos homologados sejam utilizados para compensação com débitos ou transferidos a terceiros, que poderão utilizá-los sob as mesmas regras aplicáveis ao cedente.
No caso de créditos homologados tacitamente, a transferência só poderá ocorrer após 2038 (5 anos após 2033), sujeitando-se a uma espécie de “homologação da homologação”[3].
Por fim, permite-se o ressarcimento em dinheiro desses saldos credores homologados, a ser realizado nos mesmos prazos previstos para compensação com o IBS (240 meses ou 20 anos), para os contribuintes que não conseguirem efetuar a compensação[4].
Nota-se que, no caso de alguns tributos como o PIS/Cofins e demais contribuições, as disposições ainda são escassas, gerais e pouco detalhadas. Quanto ao ICMS, por seu turno, há um maior detalhamento e indícios de previsão em lei complementar, pois, de fato, é onde se nota um acúmulo maior de créditos por parte dos contribuintes.
Ocorre que, apesar de algumas disposições sobre o ICMS estarem inseridas no novo texto e já em discussão nos projetos de lei, extrai-se que a restituição dos créditos (I) se dará de forma prolongada; (II) estará sujeita à homologação e à comunicação prévia ao Comitê Gestor; e (III) demandará toda uma adaptação e um constante planejamento pelos contribuintes.
A ausência de estudo, estruturação e avaliação prévia poderá ensejar prejuízos relevantes, provocar judicializações e repercutir de forma direta nas operações e nos fluxos financeiros das companhias.
Um exemplo de prejuízo da morosidade se relaciona ao fato de que o ICMS poderá ser compensado em até 20 anos e corrigido pelo IPCA. Esse longo prazo gera significativo impacto financeiro às empresas que acumulam créditos e poderão sofrer perdas por desvalorização.
É princípio assente no Direito Tributário que a correção monetária possui natureza de mera recomposição do valor da moeda, destinando-se a preservar o poder aquisitivo original do crédito.
Nos termos do Código Tributário Nacional, a correção monetária não constitui acréscimo patrimonial, mas mero instrumento de preservação do valor real da obrigação pecuniária (art. 161, § 1º, CTN).
Assim, a restituição do crédito no longo prazo e a adoção de índices inferiores aos cobrados do próprio contribuinte (v.g. Selic) implica violação ao princípio da equivalência nominal, pois a obrigação do contribuinte é descaracterizada, produzindo verdadeiro esvaziamento do crédito reconhecido.
Tem-se por configurada a chamada defasagem da correção, situação em que o montante atualizado não espelha a realidade econômica, ensejando perda patrimonial indevida ao credor.
Tal prática resulta, ainda, em uma espécie de extinção parcial do crédito tributário (art. 156, CTN), não por força do pagamento, mas por erosão econômica, afrontando o princípio da legalidade tributária (art. 97, CTN) e desvirtuando a própria natureza da correção monetária.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), no julgamento do Tema 905 dos recursos repetitivos, reafirmou que a correção monetária constitui mecanismo de atualização da moeda, devendo refletir fidedignamente a inflação do período, sob pena de se configurar perda patrimonial indevida. Ademais, a Corte já consolidou em sua jurisprudência (Súmulas 43 e 148/STJ) que a correção monetária incide para recompor a efetiva desvalorização da moeda.
O STJ também já firmou posicionamento no sentido de que não é dado ao legislador estadual qualquer discricionaridade para vedação ao aproveitamento dos créditos de ICMS, dispostos na norma contida no artigo 25, § 1º, da Lei Complementar Federal n.º 87/96, visto ser autoaplicável[5].
Dessa forma, a restituição dos créditos em longo prazo e a adoção de índices que não cobrem a remuneração justa do capital configuram enriquecimento ilícito/confisco do devedor e desrespeito ao princípio da isonomia, pois transfere ao credor o ônus inflacionário, em clara violação ao comando constitucional de que a indenização deve ser integral.
Além disso, o novo regramento prevê que a compensação dos créditos de ICMS depende da homologação pelos estados e comunicação prévia pelo Comitê Gestor.
Esse processo é notoriamente lento e com critérios muitas vezes subjetivos, criando um cenário de enorme insegurança jurídica aos contribuintes e que pode levar as empresas a recorrer à via administrativa ou à judicial para proteger seus direitos aos créditos, aumentando de forma expressiva o contencioso tributário.
Um outro impacto decorrente da complexidade para restituição do crédito é que, caso não seja bem assessorado, o contribuinte poderá enfrentar um aumento dos custos operacionais.
As empresas precisarão investir na contratação de especialistas contábeis e jurídicos e na implementação de softwares, a fim de garantir o correto registro e aproveitamento dos créditos tributários considerando as novas regras.
Por fim, não há como desconsiderar que a morosidade e a complexidade para restituição dos créditos vão de encontro aos princípios norteadores da reforma tributária, que pretende simplificar e facilitar o recolhimento tributário.
Isso porque a extensa “zona cinzenta” e o longo período de transição dos créditos exigirão que os contribuintes façam um planejamento tributário estratégico e um grande controle para administrar os créditos antigos e os novos tributos (CBS e IBS), garantindo que nenhum valor seja perdido no processo.
Esses são apenas alguns dos problemas a serem enfrentados pelos contribuintes nessa fase de transição e que demandam uma análise crítica acerca das medidas que podem ser adotadas para mitigar tais riscos e eventual perecimento do direito.
Uma solução que pode ser avaliada para escoar esse passivo sem a necessidade de uma judicialização é a realização frequente de programas federais ou estaduais para a compensação dos tributos. Uma espécie de mutirão de compensação ou, até mesmo, rodadas de negociações de créditos.
Um exemplo concreto dessa prática ocorre com o “Programa ProAtivo” do Estado de São Paulo, que funciona como uma espécie de incentivo estadual para facilitar a transferência de crédito acumulado de ICMS pa terceiros, independentemente da natureza do crédito objeto do pedido de transferência.
O “Programa ProAtivo” foi criado em 2021 pelo Decreto n.º 66.398 e instituído pela Resolução SFP n.º 67/2021, com o intuito de facilitar a transferência de créditos entre contribuintes, especialmente para empresas que investem no Estado, concedendo-lhes maior liquidez.
O referido programa permite a venda dos créditos entre empresas de forma mais célere e pode ser um norteador também para a Receita Federal, facilitando a transferência de crédito acumulado e evitando a formação de contencioso desnecessário.
Enfim, o tratamento a ser dado aos créditos acumulados, a partir da implementação dos preceitos da Reforma Tributária, é tema que demandará do poder público e da sociedade organizada esforço e atenção, de forma a que sejam preservados direitos e se dê efetividade ao objetivo declarado de simplificação e redução da litigiosidade em nosso país.
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[1] Art. 378, da Lei Complementar 214, de 2025.
[2] Art. 384 e seguintes, da Lei Complementar 214, de 2025.
[3] Art. 151, do Projeto de Lei Complementar n.º 108.
[4] Itens 122 e 124, do Projeto de Lei Complementar n.º 108.
[5] STJ, AgRg no AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 151.708 – RS (2012/0056149-6, Rel. Min. Humberto Martins, j. 05.06.2012
