Creditamento sobre planos de saúde e split payment ainda geram dúvidas

Por Bárbara Mengardo

A regulamentação da reforma tributária cria uma desigualdade ao permitir que apenas planos de saúde fornecidos de forma onerosa aos funcionários gerem créditos de IBS e CBS? Qual será o procedimento quando o contribuinte não concordar com os cálculos realizados por meio do split payment? Essas são algumas dúvidas que ainda não foram sanadas, segundo representantes de categorias econômicas.

Os temas se somaram a outros — como tributação da exportação de serviços e tratamento a medicamentos não aprovados pela Anvisa — abordados na última reunião da Câmara de Promoção de Segurança Jurídica no Ambiente de Negócios (Sejan), da Advocacia-Geral da União (AGU). A sessão extraordinária, realizada no último dia 26 de junho em São Paulo, foi a primeira voltada exclusivamente ao tema da reforma.

Como nas demais sessões da Câmara, a reunião contou com a participação de porta-vozes de entidades representantes de categorias econômicas, que expuseram pontos de dúvida em relação à Lei Complementar 214/25, primeira parte da regulamentação da reforma. Como encaminhamento, os representantes da Sejan se comprometeram a enviar a maioria dos 14 temas explorados à equipe responsável pela regulamentação da norma. 

O evento contou com a participação do advogado-geral da União, Jorge Messias, que na abertura da sessão destacou a importância de iniciativas como a da Sejan para a segurança jurídica do país. “Nenhuma mudança que será duradoura e trará mudanças estruturais será feita por decreto. As pessoas precisam ser convencidas, e para isso temos que retomar a capacidade de conversar”, disse.

Ao JOTA, a coordenadora adjunta do comitê tributário da Sejan, Rita Nolasco, também destacou a importância da sessão. “A transição da reforma tributária já será iniciada em 2026, assim, foi extremamente importante detectar previamente as dúvidas fundadas e pontos polêmicos trazidos pelos setores, que merecem atenção e devem ser esclarecidos, para que o processo de implementação da reforma tributária seja mais justo e eficiente. Essa abertura para o diálogo é o melhor caminho para evitarmos litígios intermináveis”, disse.

Planos de saúde

Um dos pontos levantados durante a sessão foi a possível disparidade criada pelo artigo 57 da LC 214, que prevê que os valores com planos de assistência à saúde e fornecimento de vale-transporte, vale-refeição e vale-alimentação de forma não onerosa não gerarão créditos de IBS e CBS. Exceção, porém, é a situação em que os benefícios estão previstos em acordo ou convenção coletiva de trabalho.

Para a Confederação Nacional do Trabalho (CNT), que apresentou a demanda, entretanto, o dispositivo cria uma situação de desigualdade. Na prática, o empregador que conceder os benefícios aos seus empregados sem que haja pagamento por parte dos trabalhadores não terá direito a créditos, enquanto o que repassar os encargos poderá realizar o creditamento.

“Diante desse contexto, em razão do déficit no acesso ao serviço de saúde, bem como no fornecimento de alimentação existentes no país, não seria razoável conceder o crédito desde que houvesse pagamento da IBS e CBS na operação de aquisição desses serviços?”, questionou a entidade no documento enviado à Sejan.

Entre os participantes da reunião da Sejan, o comentário foi o de que este seria um dos temas mais sensíveis tratados na sessão. A visão é de que o ponto poderia ser inconstitucional, já que cria uma diferenciação entre contribuintes que se encontram em situação semelhante. Neste caso, pesa ainda o fato de que a empresa com uma postura mais positiva em relação a seus trabalhadores teria um tratamento tributário mais gravoso.

O creditamento dos valores relacionados ao vale-transporte, de acordo com a CNT, também levanta incertezas. A advogada Alessandra Brandão, que representa a confederação, diz que há a dúvida se, na prática, seria possível a tomada desse crédito, já que o transporte público é isento dos novos tributos.

“O que vai dar crédito é só a intermediação daquela empresa que vai fornecer o vale? Ou teríamos a possibilidade de um crédito em todo serviço de transporte ao empregado, mesmo ele sendo gratuito?”, questionou Brandão durante a sessão do dia 26.

Como encaminhamento à demanda, foi determinada a redação de um parecer jurídico da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) e da AGU. Durante a sessão, o presidente do comitê tributário da Sejan, Leonardo Alvim, lembrou que os pontos tratados pela CNT foram adicionados no Congresso. “Na ideia da secretaria de reforma tributária não era para [nada] dar crédito. No Congresso Nacional se conseguiu que houvesse crédito, desde que houvesse o plano de saúde por meio de convenção coletiva”, destacou.

O setor de saúde também apresentou uma demanda relacionada ao regime aplicado aos medicamentos. O artigo 133 da LC 214 prevê que, ressalvados os medicamentos sujeitos à alíquota zero de IBS e CBS, os fármacos registrados na Anvisa estarão sujeitos a uma alíquota de 40% dos novos tributos. A Associação dos Distribuidores Farmacêuticos do Brasil (Abafarma), porém, sugeriu que o benefício abranja os itens regularizados na agência.

O advogado da associação, Oscar Yazbek Filho, salientou que a redação pode excluir medicamentos do tratamento diferenciado. “Medicamentos que têm menos riscos para a saúde pública não têm registro, têm autorização da Anvisa para serem comercializados”, afirmou.

Split payment

O split payment, sistema que repassará os tributos ao ente responsável e realizará a compensação de eventuais créditos no momento da liquidação financeira da operação, também foi alvo de debates na reunião da Sejan. Demanda apresentada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB) questionou se, antes da liquidação, o contribuinte não deveria ser ouvido, podendo contestar ou corrigir os valores apresentados pelo Poder Público.

O tema foi exposto pela advogada Misabel Derzi, que afirmou que podem acontecer, por exemplo, situações em que o contribuinte alega ter mais créditos em relação aos apontados pelo sistema, o que geraria um montante menor a pagar de tributos. Pelas regras atuais, não há uma forma de questionar essa realidade, a não ser judicialmente.

O sistema também foi tratado pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), que questionou como se dará a comunicação entre os tipos de split payment previstos na LC 214. A norma prevê três sistemáticas de split payment: o automático, que ocorrerá no momento da liquidação financeira da operação, o manual, que será utilizado quando não for possível acessar o automático, e o simplificado, que por ora é voltado ao varejo.

A CNI, entretanto, questionou como será a coexistência dessas sistemáticas, e se há o risco, principalmente em cadeias longas, de que os créditos não sejam computados a tempo.

“Nesse contexto, vários contribuintes poderão ser obrigados a realizar o recolhimento cheio do IBS ou da CBS, o que poderá impactar ainda mais o fluxo de caixa das empresas (que já será afetado pelo reflexo na antecipação no recolhimento de tributos que o próprio split payment vai impor)”, pontuou a confederação no documento enviado à Sejan.

Os temas serão encaminhados à equipe responsável por regulamentar a LC 214. Durante a sessão da Sejan, porém, o split payment foi defendido pelo procurador-geral adjunto tributário da PGFN, Moisés de Souza Carvalho.

“O modelo agora é de creditamento amplíssimo, é um modelo indutor do pagamento, e isso não temos hoje. Hoje, o maior litígio de tributos sobre o consumo são os problemas relacionados a creditamento, e isso vai acabar. Qual a contrapartida disso? Crédito agora é vinculado ao pagamento. Isso é inconstitucional? De modo algum”, afirmou.

Conceito de praça

A Fundação Getulio Vargas destacou a possibilidade de que um artigo da LC 214 perpetue uma discussão presente hoje com o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). A questão diz respeito ao parágrafo 4º do artigo 12 da Lei Complementar, que prevê que em algumas situações específicas, como em operações entre partes relacionadas ou sem valor determinado, a base de cálculo do IBS e da CBS corresponda “ao valor de mercado dos bens ou serviços, entendido como o valor praticado em operações comparáveis entre partes não relacionadas”.

O dispositivo, entretanto, gera uma desconfiança por conta do debate sobre o conceito de praça para fins de IPI. Isso porque a legislação do imposto prevê que, para operações entre estabelecimentos do mesmo grupo, o valor tributável – utilizado para o cálculo do IPI – não pode ser inferior ao preço praticado na “praça do remetente”.

A expressão gerou muitos debates, já que fomentava interpretações distintas entre Receita Federal e contribuintes. Em 2022, porém, a Lei 14.395 definiu que praça é o município onde está situado o estabelecimento do remetente.

Para a advogada Andréa Mascitto, que representa a FGV, caso a legislação não seja clara sobre o que significa “valor de mercado” pode-se gerar um debate similar ao do conceito de praça. “Quando a lei traz valor de mercado ela não fala de onde, e eu acredito que a gente deveria ser bastante preciso e bastante objetivo com essa circunscrição, para evitar litigiosidade”, disse durante a sessão da Sejan.

O tema também será encaminhado à equipe responsável pela regulamentação da LC 214. O procurador Moisés de Carvalho, da PGFN, destacou que a exposição de motivos do PLP 68, que deu origem à LC 214, traz como critério para comparabilidade de operações o local de ocorrência da operação e o prazo de pagamento. “Seguramente o conceito não será o de praça, pelos problemas que a gente já viveu, e eu não sei se haverá uma circunscrição ao município específico”, afirmou.

Exportação de serviços

A incidência dos novos tributos na exportação de serviços também foi alvo de questionamentos. O advogado Luiz Gustavo Bichara, que representou o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, destacou que hoje essas operações são tributadas tanto pelo PIS e pela Cofins quanto pelo ISS. A sistemática relativa aos dois primeiros tributos não gera muito debate, enquanto a forma de recolhimento em relação ao último imposto gera um grande contencioso. Na reforma tributária, optou-se por aplicar uma configuração semelhante ao do ISS.

Bichara apontou que o principal problema está no artigo 80 da LC 214. Isso porque o parágrafo 2º do dispositivo estabelece que o local do domicílio do adquirente no exterior será presumido quando não for possível ao fornecedor nacional identificar o local do consumo do serviço. O parágrafo 3º, por sua vez, prevê que, nesta hipótese, caso o consumo se dê no Brasil, a operação será considerada como de importação.

Para Bichara, a redação é “um convite ao litígio”. “Nunca uma exportação poderá ser considerada uma importação”, afirmou.

A colaboradora da Secretaria Extraordinária da Reforma Tributária Melina Rocha, por sua vez, ressaltou que a sistemática de tributação da exportação de serviços pelo PIS e pela Cofins hoje é mais facilmente burlável, por isso a baixa litigiosidade. Para o IBS e CBS, a ideia foi elaborar um sistema em que não basta que o serviço seja prestado a um não residente, o consumo também deve ser feito fora do Brasil.

De acordo com Rocha, a situação é comum em operações envolvendo softwares, nas quais o vendedor muitas vezes não sabe onde haverá o consumo. “A lógica é a seguinte: se no momento não tem como identificar no contrato [onde o serviço será alocado] é tratado como uma exportação. Se eventualmente houver o consumo no Brasil, o importador vai ter que, como contribuinte, tributar o IBS e a CBS. O regulamento deve trazer mais detalhamento sobre isso”, disse.

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