PorBreno Figueiredo França e João Pedro Furtado Fernandes Terra
A Emenda Constitucional nº 132/23 promoveu uma profunda reforma da tributação brasileira sobre o consumo, ao substituir PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS por um IVA-Dual, composto pelo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), de competência compartilhada entre estados, Distrito Federal e municípios, e pela Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), de competência da União. Esses tributos foram regulamentados pela Lei Complementar nº 214/2025 e concebidos sob os princípios constitucionais de simplificação, neutralidade, transparência e justiça tributária.
O desenho institucional foi estruturado para eliminar a tributação em cascata e tornar mais clara a carga tributária suportada pelo consumidor. Nesse sentido, tanto a Constituição quanto a lei complementar estabeleceram hipóteses expressas de exclusão de bases de cálculo: o IBS não pode compor a sua própria base, nem a da CBS, do Imposto Seletivo e de determinadas contribuições sociais; de forma simétrica, a CBS não pode compor a sua própria base nem a do IBS, do Imposto Seletivo. Trata-se de vedações textuais que reafirmam o espírito da reforma em favor da neutralidade e da não incidência de tributo sobre tributo.
Enigma durante o período de transição
Ocorre que, em relação ao ICMS, ao ISS e ao IPI, durante o período em que tais tributos coexistirão com os atuais, o texto constitucional e a legislação complementar permanecem em silêncio: não há norma que proíba de forma explícita a inclusão do IBS e da CBS nas bases de cálculo daqueles tributos. Esse espaço interpretativo abriu margem para que estados, municípios e União passem a defender a possibilidade de ampliação da base dos desses antigos impostos durante o período de transição ao novo modelo.
A argumentação fazendária se assenta em duas linhas principais. A primeira decorre do processo legislativo da reforma: na versão inicial da PEC 45/2019 constava previsão expressa de exclusão do IBS e da CBS das bases de cálculo do ICMS, do ISS e do IPI. Essa redação, no entanto, foi suprimida na tramitação. Para os entes subnacionais, essa supressão não poderia ser interpretada como silêncio neutro, mas sim como autorização implícita para inclusão, sob pena de esvaziamento da escolha feita pelo legislador constituinte derivado. A segunda linha é de caráter arrecadatório: sustentam que, sem a inclusão do IBS e da CBS nessas bases, haveria redução da carga tributária dos estados e municípios em comparação com o sistema vigente. Isso, segundo defendem, violaria o princípio da neutralidade estabelecido pela EC 132/2023 e acarretaria perda relevante de receitas, comprometendo o equilíbrio federativo.
Princípio da legalidade tributária
Embora revestidos de aparente plausibilidade, tais argumentos não resistem a uma análise mais acurada. A primeira objeção a essa linha de argumento decorre do princípio da legalidade tributária, expresso no artigo 150, I da Constituição, que veda a exigência ou majoração de tributo sem lei que o estabeleça. Em matéria tributária, silêncio não significa autorização, muito pelo contrário: a ausência de previsão normativa implica ausência de hipótese de incidência. Pretender criar base de cálculo a partir de interpretação extensiva (e pior, negativa) de normas que apenas excluem determinadas hipóteses é extrapolar o sentido do texto constitucional e legal.
O raciocínio incorre em um certo sofisma jurídico, pois parte do pressuposto de que só há vedação quando é expressa, concluindo que, se não houve exclusão explícita, a inclusão seria obrigatória. Essa inferência não se sustenta, já que a exclusão textual é apenas uma forma de reforço, não condição indispensável para afastar a incidência. A inexistência de comando expresso não pode ser transformada em autorização para tributar, sob pena de se inverter a lógica do sistema.
Levado às últimas consequências, esse tipo de raciocínio criaria uma autorização ilimitada para tributar qualquer conduta ou manifestação econômica que não esteja expressamente vedada pelo texto constitucional. Bastaria que a Constituição não previsse a exclusão para que se concluísse pela legitimidade da incidência, o que equivaleria a admitir que o silêncio normativo confere um poder tributário universal e irrestrito aos entes federativos, o que demonstra o absurdo da tese.
Incompatibilidade com os princípios da reforma
Ademais, do ponto de vista teleológico, a inclusão do IBS e da CBS nas bases do ICMS, do ISS e do IPI é incompatível com os princípios que nortearam a reforma tributária. A Emenda Constitucional nº 132/2023 introduziu na Constituição a simplicidade, a transparência e a justiça tributária como valores estruturantes do sistema, e a Lei Complementar nº 214/2025 reforçou esse desenho ao consagrar o princípio da não cumulatividade. A incidência de tributo sobre tributo contraria esses valores porque gera opacidade para o consumidor, dificulta a identificação da carga efetiva e aumenta a complexidade na apuração.
A contradição fica ainda mais evidente porque a Constituição e a lei complementar foram expressas em vedar a tributação em cascata em diversas situações, afastando de modo categórico, conforme citado, o IBS e a CBS em suas próprias bases e nas bases do Imposto Seletivo, do PIS e da Cofins. Esse padrão normativo revela a intenção inequívoca do legislador de impedir a incidência cruzada. Se o espírito da reforma foi eliminar a tributação em cascata, interpretar o silêncio como permissão seria comprometer a coerência normativa da reforma tributária. O que existe, na realidade, é uma lacuna que deve ser interpretada à luz dos princípios constitucionais, e não em contrariedade a eles.
Base de cálculo é o valor econômico do fato gerador
Além disso, a base de cálculo deve refletir o valor econômico do fato gerador. Em todos os tributos em questão, a materialidade corresponde ao valor da operação, do serviço ou do produto. Tributos que apenas transitam pelo caixa da empresa não representam receita, faturamento ou valor agregado, mas simples ingresso destinado ao erário. Foi exatamente com base nesse raciocínio que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 574.706 (Tema 69 da repercussão geral), firmou a tese de que o ICMS não compõe a base de cálculo do PIS e da Cofins, reconhecendo que esse montante não integra o conceito constitucional de faturamento ou receita. Permitir que o IBS e a CBS componham a base de outros tributos significaria retroceder a uma controvérsia que a Corte buscou encerrar, reacendendo discussões que a própria reforma tributária pretendeu superar.
Até porque o IBS e a CBS, por concepção, não compõem o preço do serviço ou da mercadoria (cálculo “por fora”) e, consequentemente, eles não se confundem com o valor da operação ou do serviço, que são as bases de cálculo dos referidos tributos. Se a lei não prevê expressamente a inclusão de uma parcela que é, por sua natureza, estranha ao conceito de “operação” ou “serviço”, a conclusão lógica e legal é que tal parcela não pode ser incluída. Não há necessidade de uma norma de exclusão para aquilo que conceitualmente nunca esteve incluído. Tentar incluir o IBS/CBS na base do ICMS/ISS/IPI por meio de interpretação seria uma afronta direta ao princípio da legalidade estrita.
Lei deve ser respeitada mesmo com perda de arrecadação
A dimensão arrecadatória, embora politicamente relevante, não pode servir de fundamento jurídico para a criação de hipótese de incidência. O direito tributário existe justamente para limitar o poder de tributar do Estado, evitando que a necessidade de recursos se converta em justificativa para ultrapassar as barreiras legais. Se a lei estabelece uma vedação, ela deve ser respeitada, ainda que o resultado implique perda momentânea de arrecadação. Admitir o contrário significaria esvaziar as garantias constitucionais e abrir caminho para que a escassez de recursos fosse utilizada como argumento para tributar em qualquer hipótese.
A própria Emenda Constitucional nº 132/2023 cuidou de instituir mecanismos adequados para preservar a neutralidade da arrecadação durante a transição. O artigo 130 do ADCT atribuiu ao Senado a fixação de alíquotas de referência para o IBS e a CBS, de modo a assegurar que a União, os estados e os municípios mantenham receitas equivalentes às dos tributos extintos. O desenho constitucional foi claro: eventual perda de arrecadação deve ser compensada pela calibragem das alíquotas de referência, e não por meio de um alargamento interpretativo e indevido de bases de cálculo. Se ainda assim houver desequilíbrio, o caminho legítimo é a adoção de medidas de ajuste fiscal, e não a criação indireta de novas hipóteses de incidência. Substituir os mecanismos constitucionais por interpretações em favor da Fazenda equivale a desconsiderar a solução expressa que o próprio texto constitucional estabeleceu.
Outro ponto sensível diz respeito à segurança jurídica durante a transição. Entre 2027 e 2032, período em que coexistirão os tributos antigos e os novos, previsibilidade e estabilidade são condições indispensáveis para que empresas planejem investimentos e adaptem seus sistemas de conformidade. Se a legislação permanece silente quanto à inclusão do IBS e da CBS em bases preexistentes, abre-se espaço para interpretações divergentes por entes e órgãos julgadores. Cada ente pode adotar uma leitura distinta, criando um ambiente de profunda incerteza. Esse cenário tende a gerar um contencioso massivo, com a multiplicação de teses jurídicas e o consequente desvio de recursos empresariais para a litigância em detrimento da atividade produtiva. Em vez de promover a simplificação e a redução de litígios, objetivos centrais da reforma, a interpretação favorável à inclusão ampliaria o potencial de conflitos e ressuscitaria justamente o modelo que se pretendeu superar.
Conclusão
Em suma, a tese de inclusão do IBS e da CBS nas bases de cálculo do ICMS, do ISS e do IPI não se sustenta do ponto de vista jurídico nem lógico. Ela viola o princípio da legalidade, ao criar hipótese de incidência sem previsão normativa, contraria os princípios estruturantes da reforma e desvirtua a materialidade das bases de cálculo ao incluir valores que não representam receita ou valor agregado. Além disso, reabre controvérsias já superadas pelo Supremo Tribunal Federal, em especial no Tema 69, reacendendo disputas que a reforma buscou encerrar. Ignora, ainda, a solução constitucional para eventual perda arrecadatória e introduz um grave fator de insegurança na transição, aumentando a litigiosidade em um momento que deveria ser de estabilidade.
A conclusão que se impõe é que a inclusão do IBS e da CBS nas bases do ICMS, do ISS e do IPI não encontra respaldo legal e, portanto, não pode ser realizada pelos entes federativos. A preocupação arrecadatória dos entes subnacionais deve ser enfrentada por meio da calibragem das alíquotas de referência ou de medidas de ajuste fiscal, e não pela criação de incidências cruzadas que a própria reforma pretendeu eliminar. Dessa maneira, a aprovação do PLP 16/2025, que explicita a vedação das majorações aqui abordadas, é um caminho capaz de assegurar coerência ao sistema e evitar interpretações que fragilizem o modelo, maculando, sobretudo, a transparência e a simplicidade que a reforma pretende trazer. Se a reforma busca clareza, inserir CBS e IBS na base de quaisquer outros tributos é andar na contramão da promessa constitucional.
https://www.conjur.com.br/2025-out-01/inclusao-de-ibs-e-cbs-nas-bases-de-calculo-de-icms-iss-e-ipi