Por Marcel Alcades
É fato que o período de transição da reforma tributária trará maior complexidade ao contribuinte, que deverá conviver com dois sistemas tributários distintos até o final de 2032.
Além da necessidade de cumprimento do chamado “compliance” fiscal (emissão de documentos fiscais, escrituração fiscal e todas as demais obrigações acessórias), o período de transição acrescenta mais um ponto de atenção: a convivência do contribuinte, concomitantemente, com fiscalizações e Autos de Infração relacionados a tributos vigentes, extintos ou recém-instituídos.
Nesse ponto, é interessante imaginar a vida do contribuinte no ano de 2029, quando estarão em vigor o ISS (que será extinto em 2033), o ICMS (também extinto em 2033), o IBS (com início em 2029), a CBS (com início em 2027) e o Imposto Seletivo (também com início em 2027). Como se não bastasse, em 2029, a Receita Federal ainda poderá fiscalizar os extintos PIS, Cofins e IPI, que deixarão de existir em 2027 – isso porque a Receita Federal tem até cinco anos, contados a partir da ocorrência do fato gerador, para cobrar seus tributos, podendo fiscalizar o PIS/Cofins mesmo após sua extinção.
Nesse ambiente, o contribuinte estará sujeito à fiscalização e lavratura de Autos de Infração relacionados a todos esses tributos.
No que se refere à fiscalização, os municípios terão competência para fiscalizar o ISS e o IBS; os estados, para fiscalizar o IBS e o ICMS; e a União, para fiscalizar o Imposto Seletivo, a CBS, o IPI e o PIS/Cofins.
Nesse contexto, as unidades federativas terão que decidir se a fiscalização caberá ao mesmo agente fiscal ou se haverá equipes específicas para cada tributo. Também precisarão definir como coordenarão a fiscalização da CBS e do IBS, uma vez que os tributos possuem o mesmo fato gerador, mas competências distintas para cobrança.
É verdade que se trata de uma decisão administrativa, de competência dos entes federados, mas é importante que esse processo considere a perspectiva do contribuinte e busque tornar o procedimento fiscalizatório dessa enorme quantidade de tributos o mais simples possível.
Mas não é só isso. Após a fiscalização, a autoridade fiscal poderá lavrar o Auto de Infração para cobrança dos tributos de sua competência, os quais estarão sujeitos à validação por meio de processo administrativo.
Nas esferas estadual e municipal, as leis que regem o processo administrativo tributário atualmente preveem que os Autos de Infração serão julgados por órgãos formados no âmbito do Poder Executivo, os quais validarão (ou não) o lançamento tributário. Trata-se dos tribunais e/ou conselhos administrativos estaduais e municipais, como o Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo (TIT/SP), o Conselho de Contribuintes do Estado de Minas Gerais (CCMG), o Conselho Municipal de Tributos do Município de São Paulo (CMT/SP), dentre tantos outros. Cada estado e município possui legislação própria e específica sobre seu processo administrativo, cabendo ao contribuinte verificar os requisitos processuais específicos para litigar em cada ente federado.
Em relação ao novo tributo de competência estadual e municipal, o Projeto de Lei que estabelece as regras do processo administrativo do IBS, PLP 108/2024, prevê que ele será julgado por órgão específico a ser constituído no âmbito do Comitê Gestor do IBS.
Ou seja, o contribuinte poderá ter litígios tributários com estados e municípios em diferentes órgãos: ISS e ICMS nos tribunais estaduais e IBS no âmbito do Comitê Gestor.
No que se refere aos tributos de competência da União, o Carf será o órgão administrativo competente para julgar os processos relativos tanto aos tributos do sistema atual quanto aos do sistema implementado pela reforma tributária.
Diante do exposto, pode-se concluir que a transição do modelo atual para o sistema reformado exigirá que o contribuinte:
- (i) cumpra diferentes obrigações acessórias, causando complexidade operacional no exercício de sua atividade;
- (ii) atenda uma variedade maior de fiscalizações, seja pela convivência de diversos tributos simultaneamente, seja pelas regras de competência que permitem fiscalizações em duplicidade (caso do IBS e da CBS);
- (iii) administre um contencioso administrativo tributário complexo e diversificado, considerando a multiplicidade de órgãos administrativos competentes para julgar os diversos Autos de Infração que podem ser lavrados.
Some-se a isso a já notória morosidade de todo esse processo. Como se sabe, as autoridades fiscais têm o prazo de cinco anos, contados da data do fato gerador, para lavrar o Auto de Infração. Não são raras as situações em que a fiscalização é iniciada próximo ao prazo decadencial.
Lavrado o Auto de Infração, também é comum que o processo administrativo dure até cinco anos para que se tenha uma decisão definitiva – há casos em que esse prazo é ainda maior. Assim, não é incomum que o contribuinte espere até 10 anos por uma decisão definitiva, apenas na esfera administrativa (a esfera judicial não é objeto deste artigo).
Com base no sistema atual e nas dificuldades previstas para o processo de fiscalização e lavratura de Autos de Infração no sistema reformado, conforme apontado de forma resumida acima, pode-se concluir que os tributos deixarão de incidir ao longo do período de transição, mas o contribuinte continuará convivendo com os atuais IPI, ICMS e PIS/Cofins por muito tempo.
No entanto, há uma luz no fim do túnel. Durante todo o processo legislativo que aprovou a reforma tributária, afirmou-se que o país estava deixando um sistema retrógrado para adotar um sistema moderno. A Constituição Federal passou a prever expressamente que “o sistema Tributário Nacional deve observar os princípios da simplicidade, da transparência, da justiça tributária, da cooperação (…)”.
Importante que a solução para os problemas levantados no decorrer deste artigo seja guiada por esses princípios, os quais, embora não estivessem expressos anteriormente, já podiam ser extraídos do conjunto normativo que rege a tributação nacional. O fato de estarem agora explicitados reforça ainda mais a necessidade de sua aplicação em todos os cenários.
Não há simplicidade se houver multiplicidade de fiscalizações direcionadas ao mesmo contribuinte. Não há transparência sem a definição de critérios claros para a cobrança dos tributos. Não há justiça tributária se o contribuinte precisa esperar mais de 10 anos pela validação ou não do lançamento tributário – justiça tardia é injustiça. Não há cooperação sem que o fisco considere todas as dificuldades enfrentadas pelo contribuinte nessa transição.
Que tais princípios possam guiar a conduta das administrações tributárias nesse momento tão desafiador.
