Do sigilo bancário à inteligência fiscal: como os Municípios podem avançar no contexto da Reforma Tributária

Por Eduardo Ramos Loureiro

“Os problemas estão sempre lá, esperando que alguém os resolva.” A célebre frase do matemático Paul Erdős encontra especial ressonância no campo da tributação, sobretudo diante dos desafios impostos pela Reforma Tributária.

O art. 335 da Lei Complementar (LC) 214, de 16 de janeiro de 2025, incorporou à Reforma Tributária as presunções legais voltadas à caracterização da omissão de receitas. Trata-se de dispositivo relevante, cuja adoção imediata se recomenda às Administrações Tributárias municipais que ainda não possuam regra semelhante em suas legislações.

O inc. VII do art. 335 estabelece que configura omissão de receitas os valores creditados em conta bancária cujo titular, mesmo devidamente intimado, não consiga comprovar a origem dos recursos. Como defendem Silva e Cerqueira (2018), na presunção ocorre uma inversão do ônus da prova, ou seja, há uma presunção legal que transfere ao contribuinte o dever de demonstrar a procedência dos valores. Assim, a ausência de prova suficiente em contrário implica a manutenção da presunção de omissão de receitas pelo Fisco.

A aplicação prática dessa regra pressupõe o acesso do Fisco às informações financeiras do contribuinte fiscalizado, o que suscita relevantes questionamentos no âmbito das Administrações Tributárias municipais. Surgem, assim, dúvidas quanto à forma de obtenção desses dados: quais os meios legais disponíveis para acessar informações protegidas por sigilo bancário? De que maneira as Administrações Tributárias podem tratar e utilizar tais informações? E, ainda, com quais outras bases de dados esses registros bancários devem ser cruzados para que se obtenham indícios consistentes de omissão de receitas? Essas indagações refletem as incertezas jurídicas e técnicas que ainda persistem na atuação das Fazendas municipais.

No campo jurídico, é essencial analisar o entendimento consolidado pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 2.390/DF, que enfrentou justamente a compatibilidade entre o acesso a dados bancários pelo Fisco e as garantias constitucionais de sigilo. Em 2016, o Tribunal, por maioria, reconheceu a constitucionalidade do art. 6º da Lei Complementar 105, de 10 de janeiro de 2001, que autoriza a Administração Tributária a requisitar diretamente informações bancárias das instituições financeiras, desde que respeitados os requisitos legais e o devido processo.

Essa decisão firmou o entendimento de que não há quebra de sigilo bancário, mas mera transferência do dever de sigilo da instituição financeira para a Administração Tributária, que passa a resguardar as informações obtidas com a mesma proteção legal. Nesse contexto, é fundamental que os Municípios regulamentem a requisição, o acesso e o uso, pelas Administrações Tributárias, de informações relativas a operações e serviços das instituições financeiras.

No que se refere aos aspectos técnicos de acesso, é necessário compreender o fluxo da informação. O passo inicial consiste em identificar junto a quais instituições financeiras o contribuinte alvo da fiscalização possui contas bancárias.

A Resolução Bacen 124, de 5 de agosto de 2021, instituiu os procedimentos para que Entes públicos tenham acesso ao Cadastro de Clientes do Sistema Financeiro Nacional, o chamado CCS. Os anexos da resolução trazem os modelos de requerimento de acesso e termo de adesão, que, juntamente com outros documentos exigidos, deverão ser encaminhados pelo órgão interessado ao Banco Central, via protocolo digital. Após credenciamento do órgão e do usuário máster, o Departamento de Tecnologia da Informação do Bacen libera o acesso ao CCS, grupo SCCS003, por intermédio do Sistema de Informações do Banco Central (Sisbacen).

As consultas ao CCS podem ser realizadas de duas formas:

1) consulta por CPF ou CNPJ do cliente, retornando:

  1. informações básicas: instituições com as quais o cliente mantém relacionamento, indicando datas de início e de fim desse relacionamento, quando aplicável; e
  2. informações detalhadas: dados de agências bancárias, números de registro e natureza dos bens, direitos envolvidos – tanto no caso dos relacionamentos ativos, quanto daqueles já encerrados ou inativos – e identificação dos representantes legais ou convencionais vinculados com o relacionamento, assim como os períodos desses vínculos.

2) consulta por número da conta, código da agência, identificação da instituição financeira, retornando:

  1. informações detalhadas: identificação do titular (nome, CPF ou CNPJ) e dos respectivos representantes legais, responsáveis ou procuradores.

É importante destacar que o CCS não contém informações sobre valores, movimentações financeiras ou saldos de contas. Ele fornece apenas dados sobre quais instituições financeiras o contribuinte alvo mantém ou manteve relacionamento durante o período da fiscalização. As informações bancárias propriamente ditas deverão ser obtidas junto às instituições, mediante encaminhamento de Requisição de Movimentação Financeira, com base nos dados levantados no CCS.

Após as Administrações Tributárias municipais superarem as dificuldades iniciais de identificar as instituições financeiras nas quais os contribuintes possuem contas, surge um novo e difícil desafio no fluxo da informação: a efetiva obtenção dos dados financeiros. Para enfrentar essa barreira, diversos Municípios, nos últimos anos, buscaram formalizar acordos de cooperação técnica junto à Secretaria de Perícia, Pesquisa e Análise da Procuradoria-Geral da República (Sppea/PGR), visando ao acesso ao Sistema de Investigação de Movimentações Bancárias, conhecido como Simba.

Contudo, a própria Sppea/PGR reconhece que a infraestrutura de suporte técnico do Simba não comporta a demanda potencial de mais de 5.500 Municípios, tornando inviável a celebração de acordos individuais. A alternativa proposta – a formalização de convênios por meio de associações representativas de Municípios – ainda enfrenta limitações tecnológicas, tornando o acesso ao Simba um objetivo quase “olímpico” para as Administrações Tributárias municipais.

Entretanto, a solicitação de acordo de cooperação junto à Sppea/PGR para acesso ao Simba pode gerar um benefício relevante para o Fisco municipal. Recomenda-se que, ao formalizar o pedido, o Município também solicite a disponibilização da lista de contatos das instituições financeiras. Com essa lista, as Administrações Tributárias poderão enviar diretamente às áreas responsáveis das instituições financeiras as Requisições de Movimentação Financeira (RMF), bastando comprovar a regulamentação do art. 6° da LC 105 para obter o acesso às informações.

É aconselhável que as requisições, preferencialmente, solicitem as informações no formato estabelecido pela regulamentação vigente do Banco Central do Brasil. Até 30 de novembro de 2026, aplica-se a Carta-Circular Bacen 3.454, de 14 de junho de 2010, que determina que as instituições financeiras devem prestar as informações em cinco arquivos eletrônicos, denominados:

  • AGENCIAS – dados das agências mantenedoras das contas investigadas e das transações realizadas;
  • CONTAS – identificação das contas investigadas ou envolvidas em transações;
  • TITULARES – identificação dos titulares das contas investigadas;
  • EXTRATO – detalhamento dos lançamentos relacionados às contas investigadas; e
  • ORIGEM-DESTINO – indicação da origem ou destino dos recursos de cada lançamento informado no extrato.

A partir de 1º de dezembro de 2026, entra em vigor a Instrução Normativa BCB 636, de 10 de junho de 2025, que revoga a Carta-Circular 3.454 e passa a disciplinar integralmente a matéria.

Obtidas as informações financeiras, a fase final do fluxo consiste no cruzamento de dados e na análise das informações. Cabe ao Fisco confrontar registros bancários, movimentações financeiras e extratos com as informações declaradas em livros contábeis, notas fiscais emitidas e demais obrigações acessórias. Nessa etapa, o Fisco consegue identificar inconsistências, operações não registradas ou divergências que indiquem omissão de receitas. Além disso, a análise integrada desses dados permite que o Fisco trace padrões de comportamento financeiro dos contribuintes, identificando operações atípicas e indícios de não recolhimento de tributos devidos.

O grande desafio, nesse contexto, está em como realizar o cruzamento de dados e a análise de forma prática e eficiente. Para isso, recomenda-se a utilização da ferramenta ContÁgil Lite, desenvolvida justamente para apoiar os fiscos na análise integrada de dados financeiros, contábeis e fiscais. Recentemente, a Confederação Nacional de Municípios publicou a Nota Técnica (NT) 08/2025, que apresenta orientações sobre a aplicabilidade do ContÁgil Lite nas Administrações Tributárias municipais. Essa Nota Técnica, além de oferecer diretrizes claras e objetivas para a adoção da ferramenta e reduzir barreiras técnicas à sua implementação, apresenta exemplos práticos que demonstram como os Municípios podem utilizá-la para fortalecer a fiscalização.

Por fim, tão relevante quanto as etapas de obtenção, cruzamento e análise dos dados, é o aumento da percepção de risco por parte dos contribuintes. A regulamentação do acesso às informações financeiras e a efetiva análise de dados produzem um importante efeito pedagógico: à medida que a Administração Tributária divulga os novos procedimentos de cruzamento de informações, os contribuintes passam a compreender que eventuais inconsistências serão identificadas. Esse cenário fortalece a conformidade fiscal e gera o que se pode denominar, em termos práticos, de “receita por gravidade”, ou seja, a indução natural ao cumprimento voluntário das obrigações tributárias em razão da efetividade dos mecanismos de monitoramento e controle.

Em resumo, a conjugação entre base legal, instrumentos de acesso a informações e ferramentas de análise de dados representa o caminho para que os Municípios avancem no vasto campo da fiscalização fazendária. Ao alinhar segurança jurídica, tecnologia e capacidade analítica de dados, as Administrações Tributárias municipais estarão mais bem preparadas para identificar omissões de receitas, ampliar a eficiência arrecadatória e contribuir para o equilíbrio das finanças públicas locais.

Word Cloud

A ‘Word Cloud’ deste artigo foi gerada por meio da linguagem Python e das bibliotecas Numpy, Pandas, Matplotlib e o módulo wordcloud.

Referências

BACEN. Carta-Circular 3.454, de 14 de junho de 2010. Dispõe sobre o envio de informações por instituições financeiras. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 14 jun. 2010.

BACEN. Instrução Normativa BCB 636, de 10 de junho de 2025. Dispõe sobre o fornecimento de informações por instituições financeiras e demais instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 11 jun. 2025.

BACEN. Resolução 124, de 5 de agosto de 2021. Dispõe sobre os procedimentos para acesso de entes públicos ao Cadastro de Clientes do Sistema Financeiro Nacional. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 5 ago. 2021.

BRASIL. Lei Complementar 214, de 16 de janeiro de 2025. Institui o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), a Contribuição Social sobre Bens e Serviços (CBS) e o Imposto Seletivo (IS); cria o Comitê Gestor do IBS e altera a legislação tributária. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 16 jan. 2025.

CONFEDERAÇÃO NACIONAL DE MUNICÍPIOS. Nota Técnica 08/2025: aplicabilidade do ContÁgil Lite nas administrações tributárias municipais. Brasília, DF: CNM, 2025.

SILVA, Alexandre Alcântara da; CASSEB, Alvaro Melo; RODRIGUES, Luiz Fernando. O uso de informações financeiras nas atividades de auditoria contábil pelas administrações tributárias: novas tecnologias podem aumentar a eficiência na identificação de fraudes. Ago. 2023.

SILVA, Alexandre Alcântara da; CERQUEIRA, Anderson Freitas de. Fraudes contábeis: repercussões tributárias. Curitiba: Juruá, 2018.

https://reformatributaria.cnm.org.br/do-sigilo-bancario-a-inteligencia-fiscal-como-os-municipios-podem-avancar-no-contexto-da-reforma-tributaria

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