Por Izabel Martinez, Uli Rodrigues
A Reforma Tributária sobre o consumo, instituída pela Emenda Constitucional n° 132/2023 e regulamentada pela Lei Complementar n° 214/2025, promoveu uma reestruturação do sistema tributário brasileiro, com a criação do IBS, da CBS e do IS, em substituição ao PIS, COFINS, ISS e ICMS. A partir de 2026, inicia-se o período de transição, que se estenderá até 2033, com impactos relevantes na estrutura operacional e na dinâmica financeira dos diversos setores da economia.
A Reforma possui três objetivos centrais[1]: (1) estimular o crescimento sustentável da economia, eliminando a cumulatividade, a guerra fiscal e reduzindo os litígios; (2) promover justiça fiscal e reduzir desigualdades sociais e regionais, com a adoção do princípio do destino e mecanismos como o cashback; e (3) simplificar o sistema tributário, assegurando maior transparência, segurança jurídica e cidadania fiscal.
Essa transformação ocorre no contexto de transição estrutural do Brasil. De um lado, há a urgência de simplificar e modernizar um sistema tributário marcado por complexidade, litigiosidade e insegurança jurídica; de outro, o país está inserido em um cenário global de rápidas transformações tecnológicas. A digitalização da economia, intensificada pela pandemia e impulsionada por inteligência artificial[2], automação e uso massivo de dados, exige um sistema tributário capaz de acompanhar cadeias cada vez mais digitais e integradas.
Nesse cenário, a tecnologia assume papel protagonista na Reforma para a implementação dos novos tributos. O modelo recorre a soluções digitais para enfrentar problemas sistêmicos de burocratização, evasão fiscal, sobrecarga e alto custo para a arrecadação e fiscalização. Entre os mecanismos tecnológicos previstos, destacam-se o split payment, que automatiza o repasse do valor devido ao IBS e à CBS, e o cashback, que devolve parte dos tributos às famílias de menor renda. Tais medidas estão alinhadas aos três objetivos centrais da Reforma e ao princípio da extrafiscalidade, ao promoverem simplicidade, justiça fiscal, equidade e redução da evasão fiscal.
Contudo, o setor de tecnologia desponta como um dos mais impactados pelo novo sistema. Antes submetidas ao ISS (alíquotas de 2% a 5%), além do PIS e da COFINS (alíquotas de 3,65% no regime cumulativo ou 9,25% no regime não cumulativo), passará a enfrentar carga estimada entre 26,5% e 28% com o IVA dual[3].
Diante desse cenário, ganha relevo a função extrafiscal da tributação para estimular o crescimento econômico, a inovação e reduzir desigualdades sociais e regionais. Regimes simplificados e alíquotas reduzidas podem ser decisivos para evitar que pequenas empresas e populações vulneráveis fiquem à margem da economia digital. Com esse objetivo, a Reforma instituiu redução de 60% na alíquota aplicável a serviços de segurança da informação e cibersegurança (art. 142). Tal benefício, contudo, é restrito aos serviços expressamente descritos no Anexo XI da LC, atinentes às NBS[4] 1.1501.20.00, 1.1502.90.00 e 1.1510.00.00.
Na prática, pequenas e médias empresas não foram contempladas pela redução, já que atuam majoritariamente em consultoria e suporte em TI, desenvolvimento de softwares (customizados ou não), bancos de dados, redes e circuitos integrados, hospedagem e infraestrutura (SaaS, IaaS, PaaS e sites), além de gerenciamento, manutenção e processamento de dados[5]. Justamente essas atividades, embora as mais afetadas pela elevação da carga tributária, ficaram fora do rol favorecido.
Do ponto de vista financeiro e burocrático, os impactos sobre as empresas de tecnologia se concentram em aspectos específicos que exigem atenção estratégica, conforme abaixo:
- Fato gerador incidente no fornecimento ou pagamento, o que ocorrer primeiro: Revisar o fluxo de faturamento e cobrança, evitando antecipação desnecessária da tributação.
- Local da operação é o destino, não o local do prestador: Manter os cadastros de clientes atualizados.
- Alíquota elevada (26,5% e 28%): Simular impactos para reequilíbrio dos contratos, revisar CNAEs, emitir notas fiscais a partir de outubro/2025 (período facultativo), como preparação para janeiro/2025 (período obrigatório.
- Ausência de uniformização pela alíquota variável (IBS): Monitorar as obrigações nos diversos locais.
- Não-cumulatividade: Formalizar os contratos com fornecedores para garantir o direito ao crédito.
- Simples Nacional Híbrido: Mapear a cadeia de fornecedores, distinguindo aqueles enquadrados no Simples Nacional dos submetidos ao regime regular
- Tributação sobre locação de espaços: Revisar os contratos de locação, verificando a possibilidade de enquadramento no regime transitório, cuja previsão é de redução de 3,65% da alíquota quando observados os requisitos formais como a existência de prazo determinado e o reconhecimento de firma até 31/12/2025
- Fim de incentivos fiscais (como o REPES): Observar a compensação via fundo específico.
Como consequência, verifica-se, na prática, o afastamento dos objetivos originais da Reforma Tributária, evidenciado por:
- Agravamento da desigualdade social, em desacordo com os princípios da justiça fiscal, equidade e capacidade contributiva, especialmente pela exclusão de pequenos prestadores de serviços tecnológicos do rol beneficiado.
- Aumento da burocracia, em desacordo com a proposta de simplificação.
- Intensificação da desigualdade regional, com o princípio do destino favorecendo a concentração empresarial nos grandes centros.
- Riscos à segurança nacional, decorrentes do encarecimento de tecnologias essenciais à proteção de dados.
- Aumento de custos operacionais, provocado pelo aumento de alíquotas, ausência de créditos sobre a folha (incentivando a pejotização) e novas obrigações acessórias, comprometendo a competitividade em um cenário que exige eficiência tecnológica.
O incentivo à tecnologia é vital para a competitividade global. No entanto, a Reforma Tributária impõe um paradoxo: usa a tecnologia para viabilizar sua implementação e como facilitador para a arrecadação e fiscalização, ao mesmo tempo em que eleva a carga do setor. A redução de 60% não atinge pequenas e médias empresas, que ficaram fora do benefício, apesar de serem as maiores necessitadas do ponto de vista econômico e da competitividade.
Com alíquotas elevadas, ausência de créditos sobre a folha e novas exigências de compliance, aumenta o risco de perda de competitividade e de encarecimento dos serviços digitais. Urge, portanto, a adoção de políticas complementares que conciliem arrecadação e desenvolvimento, para que a tecnologia siga impulsionando inovação, crescimento e inclusão.
[1] Disponível em: perguntas-e-respostas-reforma-tributaria_.pdf. Acesso em: 08/09/2025.
[2] Disponível em: Uso de Inteligência Artificial aumenta e alcança 72% das empresas, diz pesquisa | CNN Brasil. Acesso em: 08/09/2025.
[3] Disponível em: País terá nova tributação sobre consumo a partir de 2026 — Senado Notícias. Acesso em: 08/09/2025.
[4] NBS: Nomenclatura Brasileira de Serviços.
[5]Disponível em: https://www.gov.br/mdic/pt-br/images/REPOSITORIO/scs/decos/NBS/Anexoa_Ia_NBSa_2.0a_coma_alteraa_esa_6.12.18.pdf. Acesso em: 08/09/2025.
https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/women-in-tax-brazil/o-paradoxo-da-reforma-tributaria
