Por Marcelo Magalhães Peixoto
O devedor contumaz deixou de ser apenas um problema de arrecadação. Hoje, está no centro da agenda tributária porque ameaça a concorrência leal e distorce o próprio funcionamento da economia.
Empresas que se estruturam para nunca recolher tributos reduzem preços artificialmente, desequilibram o mercado e prejudicam os concorrentes que cumprem suas obrigações. Órgãos de controle estimam que bilhões de reais deixam de ser recolhidos todo ano por grupos que usam fraudes patrimoniais e empresas de fachada como modelo de negócio.
O artigo 146-A da Constituição autoriza lei complementar a criar critérios especiais de tributação justamente para prevenir desequilíbrios concorrenciais. Mas qualquer medida precisa respeitar direitos fundamentais e não pode confundir inadimplentes eventuais ou litigantes de boa-fé com criminosos.
Sem distinções claras, a lei pune quem passa por crise ou litiga de boa-fé, igualando-o ao verdadeiro fraudador.
A jurisprudência do STF (Supremo Tribunal Federal) oferece balizas importantes. O Tribunal veda o uso das chamadas sanções políticas, como a interdição de estabelecimentos ou a apreensão de mercadorias, reafirmando que o Estado deve cobrar tributos por meios próprios, como execução fiscal ou protesto de certidões.
Ao mesmo tempo, no RHC 163.334, reconheceu-se a possibilidade de criminalizar o não recolhimento doloso e reiterado do ICMS declarado. O recado é claro: inadimplência eventual não é crime, mas fraude sistemática pode ser tratada como apropriação indébita tributária.
É nesse ponto que a diferenciação entre tipos de devedores se torna essencial. O devedor eventual é aquele que não paga por motivos pontuais e deve ser alcançado apenas pelos instrumentos normais de cobrança.
O reiterado atrasa com frequência e pode usar a inadimplência como forma de financiar suas atividades, cabendo submetê-lo a regimes especiais proporcionais.
O grande devedor litigante acumula dívidas expressivas, mas por conta de discussões jurídicas legítimas, sem que isso o torne contumaz. Já o contumaz se estrutura para nunca pagar tributos, utilizando laranjas, empresas de fachada e fraudes reiteradas. É aqui que se localiza a verdadeira macrodelinquência tributária.
Nos últimos anos, projetos de lei têm tentado enfrentar o problema, com resultados nem sempre satisfatórios. O PL 15/2024 atrela a condição de contumaz a valores fixos de dívida, como R$ 15 milhões, confundindo volume de passivo com fraude deliberada.
Se aprovado, poderia punir indistintamente grandes litigantes de boa-fé e empresas em dificuldades temporárias, criando insegurança jurídica. O risco é transformar o combate à fraude em arma de destruição de empresas, agravando a instabilidade econômica.
O PLP 164/2022 representa avanço, ao vincular a definição de contumaz a três elementos: inadimplência reiterada, substancial e injustificada. Além disso, prevê garantias processuais mínimas, como direito de defesa, recurso com efeito suspensivo e revisão em caso de pagamento ou parcelamento.
Apesar disso, ainda abre margem para medidas desproporcionais, como cancelamento de inscrição ou restrição de atividade, que podem ser vistas como sanções políticas veladas. Sem vínculo claro entre inadimplência e impacto concorrencial, a medida perde legitimidade.
Na minha visão, a caracterização do contumaz deve exigir cumulativamente três requisitos: dolo, reiteração e impacto concorrencial comprovado. Sem esses elementos, não se pode tratar o contribuinte como fraudador.
Essa tipologia clara entre eventual, reiterado, litigante e contumaz é indispensável para evitar arbitrariedades. A repressão deve ser firme contra o fraudador, mas não pode recair sobre quem apenas discute tributos ou enfrenta dificuldades financeiras.
Outro aspecto crucial é o protagonismo do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica). A análise do impacto concorrencial da inadimplência sistemática exige a expertise de um órgão voltado à defesa da concorrência.
Não basta presumir que a inadimplência causa distorções: é preciso demonstrar, com base técnica, que houve desequilíbrio de mercado e que determinada prática comprometeu a livre concorrência.
Combater o devedor contumaz é tarefa urgente para proteger a concorrência e garantir justiça fiscal. Mas a resposta do Estado deve respeitar os limites constitucionais, diferenciando dificuldades legítimas de fraude deliberada.
Quando todos são tratados como criminosos, perdem o contribuinte honesto, a economia e o próprio sistema de arrecadação. Já quando a lei distingue corretamente, ganha o mercado, fortalece-se a livre iniciativa e preserva-se a confiança na ordem jurídica.
O equilíbrio é difícil, mas indispensável. Só ele permitirá unir arrecadação eficiente, concorrência justa e respeito aos direitos fundamentais — bases de um sistema tributário digno de confiança.