Impactos da reforma tributária para o setor industrial

Por André Severo Chaves, João Victor Ribeiro Aldinucci

A reforma da tributação sobre o consumo introduz um IVA dual — a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS, federal) e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS, de gestão subnacional) — além do Imposto Seletivo (IS). A premissa é a não cumulatividade plena, com tributação no destino, incidência “por fora” e eliminação de resíduos tributários, que hoje decorrem de cadeias longas,  regimes não uniformes e restrições ao creditamento de insumos.

Para a indústria, a unificação tem potencial de reduzir distorções setoriais e conferir maior transparência e previsibilidade ao custo tributário embutido nos preços, ainda que a efetiva variação de carga dependa de alíquotas finais, regimes específicos e tipos de insumos e produtos de cada empresa.

No plano de transição, a implantação é faseada. Em 2025, a Receita Federal iniciou um projeto-piloto para testar sistemas e processos da CBS; em 2026, iniciam-se as chamadas “alíquotas-teste” (0,9% para CBS e 0,1% para IBS), com objetivo pedagógico e de preparação de contribuintes e plataformas.

A operacionalização plena do novo regime ocorre de maneira escalonada até a substituição integral do sistema anterior — cenário para o qual as entidades industriais recomendam planejamento precoce e simulações de preços e margens. Esses marcos temporais comportam ajustes regulatórios, mas o eixo estável é: testes em 2025/2026, transição entre 2026-2032 e consolidação a partir de 2033.

Do ponto de vista econômico-concorrencial, o efeito “anti-cascata” do IVA tende a favorecer cadeias intensivas em insumos e bens de capital, comuns, por exemplo, na indústria de transformação. A apropriação integral de créditos ao longo da cadeia — inclusive em serviços correlatos — é apontada como vetor de redução de custo e de ganho de produtividade, com efeitos positivos esperados sobre investimento e competitividade internacional no médio prazo.

Por outro lado, cadeias mais intensivas em mão de obra ou com estrutura de custos fortemente baseada em folha de salários — que não gera crédito — podem se beneficiar menos desse mecanismo, ou mesmo enfrentar aumento relativo de carga, dependendo das alíquotas finais e da aplicação de regimes específicos.

Em paralelo, extinguem-se incentivos pelos estados, o que aumenta a isonomia intrassetorial, mas pode reconfigurar vantagens regionais ocorridas pela “guerra fiscal”. Essa recomposição exige revisão de contratos de médio e longo prazo (pela incidência “por fora”) e gestão ativa de fornecedores que possuem benefícios fiscais.

Soma-se a esse quadro a manutenção do IPI (imposto sobre produtos industrializados), agora com escopo residual, aplicável a bens produzidos fora da Zona Franca de Manaus (ZFM) que concorram com produtos nela industrializados. Essa exceção, embora justificada pelo modelo constitucional da ZFM, introduz uma complexidade adicional: a definição do que é “produto concorrente” pode gerar controvérsias e insegurança jurídica. Para a indústria nacional fora da ZFM, isso representa um desafio concorrencial e operacional, já que o IPI continuará incidindo de forma seletiva e assimétrica, exigindo atenção na classificação fiscal, precificação e estruturação contratual.

No comércio exterior, pode-se destacar alguns ganhos: neutralidade plena nas exportações (com imunidade de serviços diretamente vinculados, como frete e armazenagem), aprimoramento do drawback, respeito à isonomia entre fornecedores nacionais e estrangeiros em compras públicas e simplificação no pagamento de IBS/CBS na importação no momento do despacho. Para indústrias exportadoras ou com alto conteúdo importado, a eliminação do resíduo tributário e a simetria de tratamento de insumos nacionais e importados tendem a reduzir o custo incorporado e a volatilidade de capital de giro associada à recuperação de créditos.

Por outro lado, o Imposto Seletivo introduz uma dimensão extrafiscal relevante. A incidência alcança, conforme diretrizes publicadas, categorias como veículos, produtos fumígenos, bebidas alcoólicas, bebidas açucaradas e determinados bens minerais, com objetivo de desincentivar consumos considerados lesivos, o que exige monitoramento pelas indústrias potencialmente afetadas por majorações de alíquota efetiva e eventuais mudanças de classificação/NCM.

O “split payment” — pagamento fracionado na liquidação — é uma das inovações mais sensíveis ao caixa das empresas. Na prática, quando a transação é liquidada eletronicamente, a parcela do preço correspondente a IBS/CBS é automaticamente segregada e direcionada ao fisco por um prestador de serviços financeiros habilitado, sem transitar pela conta da empresa.

O desenho divulgado prevê implantação facultativa e faseada, iniciando no B2B e, em etapa posterior, no B2C. A lógica pretendida é reduzir inadimplemento e sonegação, condicionando o crédito a tributo efetivamente recolhido. Para o contribuinte industrial, isso comprime o “float” tributário que hoje financia parte do capital de giro, deslocando a gestão de caixa para antes da venda (precificação) e para a reconciliação de recebíveis.

Sob a ótica operacional, o split gera efeitos ambivalentes: (i) positivas, como menor risco de autuação por divergência entre débito/crédito (pois a liquidação alimenta a apuração), e (ii) restritivas, como redução de liquidez transitória e maior dependência de integrações com adquirentes, bancos, carteiras digitais e sistemas para parametrização correta das bases e exceções. A cobrança via split no varejo deverá ser calibrada gradualmente, sendo certo que, em qualquer hipótese, o contribuinte permanece responsável por diferenças entre o valor fracionado e o efetivamente devido — o que impõe um monitoramento fiscal/contábil.

No curto e médio prazos, a adaptação tecnológica talvez seja o maior desafio prático. A Receita Federal busca implementar uma “apuração assistida” com a disponibilidade de ferramentas padrão (como a Calculadora de Tributos). Ao mesmo tempo, o setor privado precisa acomodar regras do split, parametrizações dinâmicas de alíquota e gestão de regimes diferenciados.

Para a indústria, que costuma operar com múltiplas filiais, centros de custo e linhas de produção, os tópicos críticos incluem: (a) mapeamento de NCM/serviços para CBS/IBS com regras de crédito amplo; (b) revisão de cadastros e fluxos de compras para identificar créditos em serviços auxiliares (logística, manutenção, TI); (c) remodelagem do módulo de preços para refletir incidência “por fora”; (d) conciliação entre contas a receber e segregação tributária no split, com governança de exceções (devoluções, cancelamentos, estornos); (e) consolidação de créditos e pedidos de ressarcimento/transferência no novo ambiente; e (f) simulações de cenários na coexistência de sistemas antigo/novo — fase em que a complexidade aumenta antes de cair.

A indústria de bens de consumo final tende a sentir os dois vetores: ganho estrutural pela não cumulatividade ampla e potencial aumento de carga se o produto for atingido pelo IS (sobretaxa extrafiscal). Como o escopo do IS poderá sofrer ajustes durante a regulamentação, e há debates específicos (p. ex., bebidas açucaradas), a recomendação é projetar cenários com e sem seletivo, avaliando elasticidade de demanda e estratégias de reformulação de portfólio. Cadeias intensivas em importação/exportação (autopeças, máquinas, química) tendem a capturar benefícios de neutralidade nas exportações e desoneração simétrica de insumos, com melhora do giro de créditos e menores ineficiências no drawback. Já segmentos com fortes benefícios regionais precisarão reavaliar a estratégia sem a “âncora” da guerra fiscal.

Estima-se que alíquota de referência agregada para CBS+IBS seja na casa de até 28%, mas trata-se de parâmetro de estudos e comunicações setoriais, não de número definitivo e aplicável indistintamente. A carga efetiva por empresa dependerá das entradas (créditos), da incidência de IS, dos regimes específicos, do mix interestadual (destino) e de eventuais tratamentos diferenciados previstos em lei complementar. Nesse contexto, ressalta-se que a redução da tributação “em cascata” pode compensar, parcial ou integralmente, valores nominais de alíquota mais altos, tornando imprescindível simular margens por linha de produto.

A padronização de regras e a apuração assistida tendem a reduzir litigiosidade no longo prazo; entretanto, a fase de transição impõe riscos operacionais: parametrizações incorretas de documentos fiscais, inconsistências entre split e apuração, e controles mais rígidos de crédito (vinculados a tributo recolhido).

A governança fiscal deverá articular três “camadas”: (i) fiscal/tributária (crédito amplo e regimes), (ii) contábil (políticas de reconhecimento “por fora” e provisões) e (iii) financeiro (reconciliação de recebíveis, D+ de liquidação e integração com sistemas). A recomendação das entidades industriais é iniciar desde já avaliações de impacto, revisão de contratos e sistemas de software, reduzindo o risco de “degrau” operacional em 2026-2027.

Em síntese, a reforma cria condições para um sistema mais neutro, transparente e pró-produtividade, com benefícios mais nítidos em cadeias longas, exportadoras e intensivas em serviços auxiliares (crédito amplo). Em contrapartida, surgem desafios: (i) gestão do fluxo de caixa sob o split payment; (ii) adaptação robusta de sistema e integrações de meios de pagamento; (iii) reprecificação “por fora” e revisão contratual; (iv) monitoramento cuidadoso do Imposto Seletivo e de regimes específicos; e (v) atenção redobrada à permanência do IPI sobre produtos concorrentes da Zona Franca de Manaus, cujo alcance poderá gerar disputas classificatórias e desbalanceamentos setoriais.

Para o gestor industrial, o caminho prudente é combinar simulações econômico-tributárias, pilotos tecnológicos e atualização contínua conforme atos do Comitê Gestor do IBS e da Receita Federal avancem — aproveitando ferramentas oficiais, guias e o ambiente de testes em curso, além de uma assessoria tributária especializada.

https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/impactos-da-reforma-tributaria-para-o-setor-industrial

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