Por Mariana Ferreira
De acordo com o texto aprovado na Emenda Constitucional (EC) nº 132/2023, o Comitê Gestor será uma entidade pública de regime especial e terá independência técnica, administrativa, orçamentária e financeira. Até que a segunda lei complementar da reforma tributária seja sancionada, espera-se que o legislador atue com a devida cautela respeitando os princípios do pacto federativo, considerando que a gestão da arrecadação do IBS, incluindo a operacionalização do sistema de crédito e débito e a devolução dos saldos credores aos seus respectivos titulares, será de competência exclusiva do Comitê Gestor, assim como a interpretação da legislação tributária referente ao imposto.
O constituinte derivado também atribuiu ao Comitê Gestor competências de grande importância, conferindo à sua atuação não apenas um caráter técnico, mas também político, o qual abarca mais de 25 competências administrativas, assim previstas nos incisos do parágrafo 1º do artigo 2º do Projeto de Lei (PL) nº 108/2024. Desta forma, os entes estaduais, distrital e municipais delegarão ao Comitê Gestor as suas competências para editar regulamentos, uniformizar a interpretação e aplicar a legislação relativa ao IBS.
À primeira vista, a extinção do ICMS e do ISS poderia sugerir uma supressão de competências dos entes subnacionais, mas considerando que estes entes continuarão a exercer atribuições fundamentais, incluindo a edição de regulamentos, a uniformização da interpretação e aplicação da legislação, bem como a arrecadação por meio do Comitê Gestor, no qual possuem representatividade garantida, essa percepção inicial não se confirma.
Na verdade, a criação do Comitê Gestor parece ser a solução encontrada para simplificar e unificar a arrecadação do ICMS e ISS. Por outro lado, retira dos entes subnacionais a sua participação na gestão do imposto que virá em substituição. Nessa toada, já há um intenso debate se o Comitê Gestor não passaria a figurar como uma espécie de “quarto poder”. Essa discussão opera em duas dimensões: (i) uma constitucional, que questiona sua validade à luz da forma federativa de Estado, e (ii) outra administrativa, relacionada à estrutura e operacionalização das suas competências.
Um dos pontos que mais chama a atenção é a previsão expressa da competência do Comitê para decidir o contencioso administrativo (artigo 156-B, III, da CRFB/88). Por meio da disposição constitucional é possível concluir que o Comitê Gestor foi discretamente alçado à condição de “Carf” do IBS, o que enseja os mais variados questionamentos. Até mesmo porque a atuação do Comitê não estará adstrita a qualquer vinculação, tutela ou subordinação hierárquica a qualquer órgão da administração pública, o que torna essa entidade pública ainda mais sui generis.
Apesar dos benefícios trazidos pela reforma tributária, as modificações no que diz respeito à criação do Comitê Gestor apresentam indícios de uma redução da forma federativa do Estado. No tocante à instituição dos impostos, por exemplo, enquanto atualmente o ICMS e o ISS são de competência estadual, distrital e municipal, respectivamente, e instituídos por leis próprias, o IBS, de natureza compartilhada, será instituído por lei complementar nacional, retirando-se do respectivo ente subnacional a autonomia legislativa para instituição do seu próprio tributo.
Nesse ponto, verifica-se uma significativa redução da autonomia legislativa dos entes estaduais, distrital e municipais, acompanhada do fortalecimento do poder federal à justificativa de uniformização e simplificação. Quanto à estrutura administrativa, que envolve a atribuição de arrecadar, administrar e distribuir o IBS, essa atribuição incumbirá ao Comitê Gestor como entidade representativa em detrimento do ente federativo que antes atuava diretamente.
Ocorrerá, aqui, uma espécie de transferência de exercício da competência sem a alteração da titularidade. É dizer: os entes subnacionais continuam sendo competentes pelo tributo compartilhado, mas a sua capacidade tributária passará a ser exercida via Comitê Gestor em prol da tão sonhada simplicidade e uniformidade tributária.
Por essas razões, a criação do Comitê Gestor do IBS representa o nascimento de um quarto poder, eis que transfere as autonomias financeira, administrativa, normativa e política dos entes subnacionais a uma atuação representativa por meio do Comitê.
No entanto, a centralização da gestão, da interpretação normativa e do contencioso administrativo em um órgão interfederativo com independência técnica, administrativa, orçamentária e financeira suscita preocupações relevantes quanto ao respeito ao princípio do pacto federativo.
A amplitude das competências atribuídas ao Comitê Gestor, que extrapolam a esfera técnica e adentram aspectos legislativos e administrativos dos entes subnacionais, aponta para uma reconfiguração do federalismo brasileiro. Tal estrutura compromete a autonomia dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, que, embora ainda formalmente competentes, terão sua atuação tributária substancialmente comedida por uma entidade pública de regime especial caracterizada pela plena ausência de subordinação.
Portanto, apesar de a reforma tributária trazer inegáveis avanços em termos de racionalidade e simplificação, a criação do Comitê Gestor representa o nascimento de um novo e sui generis poder, que concorrerá com a autonomia dos entes subnacionais e o equilíbrio federativo estabelecido pela Constituição da República.
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