O reforço e a fragilização das garantias fundamentais no PLP 108/24

Por Pedro Gabriel Barroso de Oliveira, Juliano Nardelli Sasaki

PLP 108/2024 instala nova fase do contencioso tributário, ao estabelecer a disciplina do processo administrativo para os litígios do IBS. Malgrado o Poder Legislativo tenha fortificado as conexões fiscais ao sistema de precedentes, manteve o recuo quanto ao controle de legalidade e constitucionalidade pelas autoridades julgadoras, o que pode repetir tom crônico do estímulo à judicialização e frustrar o intelecto de redução dos custos associados à arrecadação e ao pagamento de tributos que plasmou as discussões da EC 132/2024.

A proposta legislativa é oxigenadora ao reger que a tramitação, iniciada pelo ato de impugnação diante do crédito tributário formalizado pelo lançamento de ofício, não se limita às razões de fato ou de direito invocadas, porquanto a autoridade julgadora pode determinar diligências e “solicitar a manifestação dos interessados na solução do processo” (art. 84, caputc/c art. 87, caput, do PLP 108). A previsão encoraja a cooperação, mas somente deixa a porta aberta se a autoridade julgadora assim decidir.

A prática de participação conjunta entre o fisco e os contribuintes, na busca da verdade material, urge se tornar a regra, sobretudo perante a previsão do art. 92, I a IV e § 1º, que exige a observância, “desde que ausentes fundamentos relevantes para distinção ou superação”, de: (i) Súmulas Vinculantes do STF; (ii) decisões transitadas em julgado em sede de controle concentrado de constitucionalidade; (iii) decisões do controle difuso submetidas ao rito do 52, X, da CF, pelo Senado Federal; (iv) decisões transitadas em julgado na sistemática da Repercussão Geral ou dos Recursos Repetitivos; e (v) “atos administrativos vinculantes decorrentes da competência constitucional do CG-IBS para uniformização da interpretação e da aplicação da legislação do IBS”.

Caso a decisão deixe de aplicá-los sem “distinguishing” ou “overruling”, caberá incidente de uniformização, mas é defeso afastar a legislação tributária sob os auspícios de inconstitucionalidade ou ilegalidade. Logo, mesmo se um ato normativo for eivado desses vícios, a autoridade deverá aplicá-lo, em franca dissonância com o “due process” e o princípio da legalidade (arts. 5º, LIV, e 37, caput, da CF). A aprovação dessa disposição merece ressalvas, outrossim, frente ao art. 84, IV, da CF, pois se os atos executivos devem promover a “fiel execução” da lei, excluir sua apreciação pelo Comitê Gestor importaria pulverizar a função julgadora da autoridade administrativa e dilatar às questões ao crivo do Poder Judiciário.

Não só. Ao se tornar alheio à legalidade ou à inconstitucionalidade da legislação tributária, a autoridade julgadora perde sua potência jurisdicional e se esvai do poder de resolver antinomias do ordenamento.[1] A redação do PLP 108, em verdade, ecoa o vetusto art. 26-A do Decreto 70.235/1972, que assim versa quanto ao Carf.

Descabe olvidar, contudo, que a questão não se esgotou no STF. No julgamento da Petição 4.656, o ministro Gilmar Mendes chancelou o controle difuso feito pelo CNJ e, em sede de obiter dictum, firmou que o tópico não estava pacificado, eis que aquele órgão apenas havia aplicado entendimento sedimentado pela corte,[2] posição seguida pelo ministro Luís Roberto Barroso.

Na mesma via, a ministra Cármen Lúcia destacou que a faculdade de controle versa poder implícito dos órgãos administrativos, na medida em que que todos os aplicadores da lei devem interpretar a Constituição. Com efeito, o ministro Luiz Fux frisou que impedir esse exercício pleno de controle seria diminuir o significado de uma “sociedade aberta aos intérpretes da Constituição”.

A referência direta à Peter Häberle não configura mero truísmo, haja vista que a Constituição é enxergada enquanto processo público, cuja interpretação é realizada até por aqueles que não sejam diretamente por ela afetados.[3] Dessa feita, a unidade da Constituição surge das funções exercidas pelos diferentes intérpretes, o que resulta na fragilidade argumentativa em vedar o exercício desse poder aos órgãos administrativos.

Curioso, ademais, que o art. 92, § 1º, do PLP 108, imponha aos julgadores a deferência aos “atos administrativos vinculantes” editados pelo Comitê Gestor, cujo Conselho Superior é composto apenas por representantes dos estados, Distrito Federal e municípios (art. 8º), além de seu Comitê de Harmonização, formado somente por auditores fiscais (arts. 111 e 112). A participação da sociedade civil, sobretudo de acadêmicos, é essencial para abalizar as discussões com perspectivas para além dos interesses do fisco. Inexiste previsão, também, sobre quais atos dessa natureza são vinculantes, o que tornará nublado planejamento dos contribuintes a respeito do que devam seguir.

O papel secundário do sujeito passivo é reforçado pelo art. 91, § 4º, do PLP 108, dado que ao decidir se há vinculação, a autoridade julgadora deverá ouvir exclusivamente a representação fazendária sobre eventual identidade entre a matéria tratada, sem qualquer dever de escutar o contribuinte, em violação ao princípio do contraditório (art. 5º, LV, da CF). A dinâmica é mais grave frente do art. 83, § 4º, do PLP 108, ao permitir que a autoridade administrativa que lavrou o AIIM altere o lançamento após a impugnação, “diante de vício sanável ou ato de lançamento de ofício ou de necessidade de sua reformulação”.

Mais além, não há qualquer previsão de que a distinção ou a superação do precedente, ainda que permeada por acatar ou repulsar os argumentos do fisco, demande encargos de fundamentação. A premissa se choca com o norte do art. 93, IX, da CF, que exige, sob pena de nulidade, a motivação das decisões proferidas pelo Poder Judiciário, bem como a obediência da Administra Pública aos princípios da motivação e da eficiência (art. 2º, caput, da Lei 9.784/1999).

Importa realçar que o art. 15 do CPC prevê a aplicação supletiva e subsidiária do codex aos processos administrativos na ausência de regulamentação, o que demanda atenção ao rol numerus apertus de seu art. 489, § 1º, como vértice ilustrativo das hipóteses em que as decisões serão consideradas não fundamentadas e, por conseguinte, passíveis de anulação. Lado outro, a ausência de especificação do PLP 108 a respeito poderá amplificar o contencioso tributário.

Deveras, o grupo de trabalho coordenado pela ministra Regina Helena Costa, instituído por meio da Portaria STJ/GP 458/2024, identificou tanto que a organização da tributação no destino e a remodelagem fiscal do setor de serviços devem intensificar o número de disputas judiciais quanto que a ausência de unificação processual pode gerar judicialização duplicada.

De igual modo, o CNJ oficializou grupo de trabalho, pela Portaria 96/2025, para estudar as mudanças assinaladas, posto enxergar a potencialidade de entraves na uniformização da jurisprudência e a inauguração de fronteiras ao acesso à Justiça.

Em corolário dos interesses arrecadatórios, o modelo erigido pelo contencioso administrativo do PLP 108 esmaece garantias processuais fundamentais, ao permitir que a autoridade julgadora seja atriz homologatória dos desígnios do fisco.

Ausentes reflexões esmiuçadas no Congresso Nacional, no afã de possibilitar a participação igualitária entre os sujeitos passivo e ativo, bem como os controles de legalidade e constitucionalidade, a consagração da lógica estampada na atual versão do PLP 108 estimulará a judicialização, em confronto à salvaguarda da duração razoável e da celeridade do processo (art. 5º, LXXVIII, da CF).


[1] Cf. XAVIER, Alberto. Princípios do processo administrativo e judicial tributário. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 96.

[2] Cf. STF. Petição nº 4.656. Rel. Min. Cármen Lúcia, Pleno, j. 19/12/2016, DJe 04/12/2017.

[3] Cf. HÄBERLE, Peter. Die offene Gesellschaft der Verfassungsinterpreten. Juristen Zeitung, n. 10, p. 297-305, mai. 1975, p. 301.

https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-reforco-e-a-fragilizacao-das-garantias-fundamentais-no-plp-108-24

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