Retrocesso do PLP 108/24 no contencioso

Por Breno Ferreira M. Vasconcelos e Maria Raphaela D. Matthiesen

O Projeto de Lei Complementar (PLP) nº 108/24, segunda medida legislativa voltada à regulamentação da reforma tributária do consumo aprovada pela Emenda Constitucional (EC) nº 132, está entre os temas tributários com expectativa de retorno à pauta do Congresso Nacional no segundo semestre. O PLP aborda temas relevantes para a implementação da reforma e atualmente tramita no Senado Federal, ao qual foi encaminhado após ter seu texto aprovado, com alterações, pela Câmara dos Deputados.

Até o momento em que escrevíamos este artigo, o PLP já recebeu 11 emendas tratando de um ponto central para a redução da litigiosidade pretendida com a EC 132/23: a uniformização da jurisprudência administrativa envolvendo o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS).

As dificuldades políticas decorrentes das disputas entre a União e os entes subnacionais permearam todo o processo legislativo da reforma tributária, resultando na adoção do Imposto sobre Valor Agregado (IVA) Dual e, no PLP 108/24, em uma segregação do contencioso administrativo.

Embora o artigo 156-B, §8º, da Constituição Federal permita a integração das atividades de julgamento do IBS e da CBS – o que, nos parece, seria o ideal –, o PLP atribuiu a um novo tribunal a competência para julgamento do IBS, ficando a CBS sujeita à apreciação das Delegacias de Julgamento da Receita Federal (DRJs) e do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).

Essa divisão trouxe um novo desafio, levantado desde a tramitação do projeto junto à Câmara dos Deputados: é necessário uniformizar a interpretação dos dois órgãos de julgamento? Sendo necessário, como fazê-lo?

A resposta à primeira pergunta é positiva. Sim, é necessário. De acordo com o artigo 149-B da Constituição, IBS e CBS devem observar as mesmas regras com relação aos seus fatos geradores, bases de cálculo, hipóteses de não incidência, sujeitos passivos, imunidades, regimes específicos, diferenciados ou favorecidos, e regras de não cumulatividade e creditamento.

Então, como garantir essa padronização? A solução encontrada na Câmara dos Deputados foi a de alargar as atribuições conferidas ao Comitê de Harmonização das Administrações Tributárias, criado pela Lei Complementar nº 214/25, integrado apenas por representantes da Receita Federal do Brasil e do Comitê Gestor do IBS, em igual número.

Conforme o PLP 108/24, seria esse Comitê de Harmonização o competente para a uniformização da jurisprudência administrativa (artigo 111 do PLP 108/24). Somada a essa mudança, o PLP previu que o Comitê de Harmonização obrigatoriamente ouvirá o Fórum de Harmonização Jurídica das Procuradorias (artigo 111, parágrafo único, do PLP 108/24), também previsto na LC 214/25 e integrado por representantes da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e de Procuradorias Estaduais e Municipais (ou do Distrito Federal).

E mais: as decisões do Comitê de Harmonização serão vinculantes (artigo 113 do PLP 108/24), de modo que deverão ser observadas pelo Carf e pelo tribunal do IBS.

Mas há um problema essencial na solução encontrada pela Câmara: o Comitê de Harmonização foi concebido para uniformizar a regulamentação e as obrigações acessórias do IBS e da CBS, sendo órgão vocacionado justamente à prevenção do contencioso. Uma vez instaurado o litígio, a atuação preventiva do Comitê já terá se esgotado e a dúvida que persistir após essa etapa deverá ser saneada em julgamento que observe paridade, o contraditório e a ampla defesa, permitindo que as partes sejam ouvidas de forma isonômica.

A paridade na uniformização das divergências entre Carf e tribunal do IBS traria mais equilíbrio ao contencioso administrativo, abrindo espaço para um debate plural e que comporta diferentes vieses e experiências na interpretação da legislação tributária – logo, com maior potencial de proferir decisões mais aderentes pela sociedade.

Como apontado no Diagnóstico do Contencioso Judicial Tributário Brasileiro (Insper/CNJ), entre as causas da judicialização excessiva no país está a ausência de canais efetivos de resolução administrativa, da postura pouco cooperativa entre Fisco e contribuinte e da falta de alinhamento entre a administração e o Judiciário.

A instabilidade das decisões administrativas e a excessiva influência das autoridades fiscais nos julgamentos, por sua vez, são fatores que contribuem para a complexidade do sistema tributário, como relatado no estudo “What are the Drivers of Tax Complexity for MNCs? Global Evidence”.

A solução encontrada pelo PLP 108/24 está, portanto, na contramão da racionalidade e modernização pretendidas pela reforma. No modelo proposto pelo texto atual do PLP 108/24, Carf e tribunal do IBS, órgãos com turmas de julgamento paritárias, poderão se tornar meras instâncias replicadoras do entendimento firmado pelo Comitê de Harmonização, deslocando a resolução dos conflitos tributários para o Judiciário, com os ônus decorrentes da exigência de custas processuais, honorários de sucumbência e garantias.

Para evitar esse cenário, é preciso que o debate sobre a paridade seja enfrentado no Senado, com duas possíveis saídas: ou se garante a paridade ao Comitê de Harmonização exclusivamente no exercício da atividade de uniformização jurisprudencial, ou se retoma a restrição de suas atribuições originais, previstas na LC 214, para que o órgão tenha função estritamente consultiva e os litígios sejam decididos sem amarras pelo Carf e pelo tribunal do IBS.

https://valor.globo.com/legislacao/coluna/retrocesso-do-plp-108-24-no-contencioso.ghtml

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *