Por Dayana Uhdre
Este artigo disseca os desafios tecnológicos da reforma, recorrendo à metáfora de um organismo vivo — com coração, sangue e cérebro — para expor a interdependência sistêmica e provocar reflexões sobre a escala monumental dessa transformação.
A reforma tributária brasileira, instituída pela EC 132/2023, representa uma guinada tecnológica com potencial para reposicionar o Brasil como referência global em administração fiscal. Em um cenário em que 85% a 88% das transações financeiras já são digitais e estima-se que, em 2025, atinjam até 200 bilhões de operações anuais[1], a nova tributação sobre o consumo – via IBS e CBS – exige uma infraestrutura digital robusta, interoperável e segura.
Split payment: o coração do sistema
No centro da reforma está o split payment, que redefine o recolhimento tributário. O tributo é automaticamente retido no momento do pagamento, antes de alcançar o contribuinte, permitindo creditamento instantâneo. Em 2025, espera-se que 90 a 110 bilhões de transações ocorram via Pix e outras 40 a 50 bilhões com cartões. Cada uma delas deverá ser integrada, em tempo real, com a Nota Fiscal Eletrônica (NF-e), exigindo tecnologia de ponta e sincronia entre setores público e privado.
Nota Fiscal Eletrônica: o sangue do sistema
A NF-e é o repositório estruturado de dados essenciais – valor, alíquota, origem, destino – e seu papel na sincronização com o split payment é fundamental. Diante da magnitude transacional, especialmente em tempo real via Pix, garantir precisão e padronização é um desafio técnico e estrutural. A definição do destino da operação, indispensável para o cálculo das alíquotas e a repartição da receita, requer comprovação instantânea em dois níveis, como exige a legislação complementar.
Comitê Gestor e Receita Federal: o cérebro da operação
O Comitê Gestor e a Receita Federal operam como o cérebro do novo organismo fiscal, processando dados em tempo real para calcular tributos, atribuir créditos e redistribuir receitas entre os entes federativos. Com isso, emerge a apuração assistida — a chamada “declaração pré-preenchida” — que antecipa a conformidade fiscal e reduz a carga sobre o contribuinte.
Essa inteligência algorítmica, porém, levanta uma provocação jurídica de alto impacto: se o crédito e o débito tributários são constituídos automaticamente, no instante da operação, ainda fazem sentido institutos clássicos como lançamento, decadência ou prescrição? Estaríamos diante de um novo fato jurídico tributário[2], estruturado por linhas de código que operam com força normativa.
É nesse ponto que ressoa a teoria de Lawrence Lessig: code is law[3]. O direito passa a ser exercido não apenas pelo texto da lei, mas pela arquitetura dos sistemas que regulam, em sua essência funcional, o comportamento dos contribuintes e do próprio Estado.
Interoperabilidade: o labirinto técnico
Sincronizar ERPs, bancos, carteiras digitais e fiscos demanda padrões como o ISO 20022. A latência mínima, exigida pela lógica do split payment, torna a interoperabilidade um ponto crítico. Qualquer falha pode comprometer a arrecadação. Paralelamente, a cibersegurança torna-se vital: proteger centenas de bilhões de transações requer criptografia robusta e monitoramento contínuo. A escalabilidade do sistema, para suportar picos como a Black Friday, é outro desafio essencial.
Simples Nacional: a assimetria do sistema
Com 84% das empresas brasileiras enquadradas no Simples Nacional[4] e excluídas da lógica do split payment, cria-se uma assimetria operacional. Empresas com baixa capacidade tecnológica permanecem à margem da nova engrenagem fiscal, instaurando um ecossistema de conformidade em múltiplas velocidades.
A solução para evitar tal abismo pode residir em estratégias de inclusão digital: plataformas simplificadas para emissão de NF-e, incentivos à digitalização e programas de capacitação voltados a micro e pequenas empresas. Sem essas medidas, corre-se o risco de perpetuar desigualdades estruturais sob o verniz da inovação.
Inovação ou êxodo fiscal?
A estimativa de alíquotas combinadas entre 26% e 27% para IBS e CBS impõe riscos à economia digital. Tal carga pode desestimular fintechs, plataformas e desenvolvedores de IA, expulsando inovação para jurisdições mais amigáveis. A pergunta central é: queremos impulsionar o futuro ou criar barreiras a ele?
Caminhos para a viabilização
A reforma é viável, desde que acompanhada de estratégias tecnológicas:
- Padrões globais de integração, como o ISO 20022, para garantir sincronia entre sistemas;
- Ambientes de testes regulatórios que permitam validar integrações entre agentes antes da implementação; e
- Parcerias público-privadas para criar centros de interoperabilidade e acelerar a adoção tecnológica.
A democratização tecnológica é indispensável. Plataformas simplificadas e programas de treinamento garantirão que micro e pequenas empresas não sejam excluídas dessa transformação.
Conclusão: uma nova cidadania fiscal digital
A reforma não é apenas normativa – é fundacional. A criação de uma infraestrutura de cidadania fiscal digital exige planejamento, tecnologia e uma profunda mudança institucional. Se negligenciarmos a tecnologia como eixo central, a promessa de modernização poderá se tornar mais uma frustração constitucional.
Mas, com inteligência estratégica e colaboração intersetorial, o Brasil tem a chance de construir um sistema fiscal que vá além de financiar o presente: que seja capaz de catalisar o futuro. Estamos diante de uma encruzilhada histórica – tributar com inteligência ou assistir, mais uma vez, ao trem da inovação partir.
[1] ABECS – Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Crédito e Serviços. Uso de cartões supera 4 trilhões de reais em 2024. Panorama Abecs, 8 jan. 2025. Disponível em: https://panoramaabecs.com.br/uso-de-cartoes-supera-4-trilhoes-de-reais-em-2024/. Acesso em: 06 abr. 2025; BANCO CENTRAL DO BRASIL. Pix atinge a marca de 200 milhões de chaves e 160 milhões de usuários. Brasília, 29 fev. 2024. Disponível em: https://www.bcb.gov.br/detalhenoticia/20460/nota. Acesso em: 06 abr. 2025; DELOITTE. Pesquisa Febraban de Tecnologia Bancária. São Paulo: Deloitte, [2025?]. Disponível em: https://www.deloitte.com/br/pt/Industries/financial-services/research/pesquisa-febraban-tecnologia-bancaria.html. Acesso em: 11 abr. 2025; FEBRABAN. Pix deve movimentar R$ 2,73 trilhões até o fim do ano, com 63,7 bilhões de operações, aponta Febraban. O Globo, Rio de Janeiro, 13 nov. 2024. Disponível em: https://extra.globo.com/economia/noticia/2024/11/pix-deve-movimentar-r-273-trilhoes-ate-o-fim-do-ano-com-637-bilhoes-de-operacoes-aponta-febraban.ghtml. Acesso em: 06 abr. 2025; FEBRABAN. Transações feitas com Pix crescem 61% no primeiro semestre do ano. São Paulo: Febraban, [2025?]. Disponível em: https://portal.febraban.org.br/noticia/4184/pt-br/. Acesso em: 11 abr. 2025.
[2] DINIZ DE SANTI, Eurico Marcos. Novo fato gerador do século 21 na matrix do Comitê Gestor do IBS/CBS. JOTA, 15 jan. 2024. Disponível em: https://www.jota.info/artigos/novo-fato-gerador-do-seculo-21-na-matrix-do-comite-gestor-do-ibs-cbs. Acesso em: 10 abr. 2025.
[3] LESSIG, Lawrence. Code: and other laws of cyberspace. 2nd revised ed. New York: Basic Books, 2006.
[4] CONTFISCO. Brasil atinge 21,6 milhões de empresas ativas em 2024; Simples Nacional domina 84% do mercado. ContFisco, 4 jan. 2025. Disponível em: https://contfisco.com.br/noticias-contabeis/brasil-atinge-21-6-milhoes-de-empresas-ativas-em-2024;-simples-nacional-domina-84-do-mercado/7832a1d9-f0a7-4604-9e1a-0dc3fe7c5183/. Acesso em: 06 abr. 2025.