Por Flávio Miranda Molinari
A reforma tributária aprovada com a Emenda Constitucional 132 e a Lei Complementar 214/2025 não apenas representa uma reestruturação profunda da lógica de arrecadação e repartição de tributos no país, como também colocou em evidência o papel estratégico da atividade de lobbying no processo legislativo brasileiro.
Segundo levantamento realizado pelo Anuário Origem, fonte especializada em monitoramento institucional, a pauta tributária despontou como o tema de maior interesse entre os grupos de pressão que atuam no Congresso Nacional, superando áreas tradicionalmente relevantes como saúde, educação e meio ambiente.[1]
Esse dado revela não apenas a centralidade econômica e política da reforma, mas também reforça a urgência de se enfrentar uma lacuna histórica no ordenamento jurídico nacional: a ausência de uma lei geral que discipline, de forma sistemática, a representação de interesses junto aos poderes públicos.
Antes de qualquer tentativa de regulação normativa, é indispensável reconhecer a compatibilidade entre a prática do lobbying e a ordem constitucional. O exercício do poder de influência por particulares nas decisões públicas é uma marca histórica na formação do Estado brasileiro.[2]
A atuação de indivíduos, organizações e setores organizados junto aos entes estatais para influenciar decisões públicas constitui exercício legítimo de direitos fundamentais expressamente garantidos no artigo 5º da Constituição da República. O inciso XVII assegura o direito de associação para fins lícitos, enquanto o inciso XXXIV, alínea “a”, garante a todos o direito de petição aos Poderes Públicos, em defesa de direitos ou contra ilegalidades ou abusos de poder.
Esses dispositivos consagram o direito de acessar autoridades, requerer reuniões, submeter estudos, pareceres e propostas legislativas, ou mesmo participar de audiências públicas.
A inexistência de um tipo penal que incrimine a prática do lobbying também é sintomática de sua neutralidade normativa. Eventuais ilegalidades associadas à atividade não decorrem da sua essência, mas de desvios que se confundem com práticas tipificadas como corrupção, tráfico de influência, prevaricação, advocacia administrativa ou exploração de prestígio.[3]
Essas figuras possuem previsão própria no Código Penal e devem ser objeto de repressão eficaz — mas não podem ser utilizadas como argumento para criminalizar ou interditar, por contaminação, a prática legítima da representação de interesses.
Em termos conceituais, o lobbying deve ser compreendido como o exercício profissionalizado e estruturado do poder de influência sobre processos decisórios estatais, com vistas a promover ou preservar interesses específicos.
Trata-se de uma forma de atuação política — no sentido lato do termo — direcionada ao Executivo, Legislativo e, em determinadas hipóteses, ao Judiciário, a exemplo das manifestações por meio de amicus curiae ou da apresentação de memoriais e sustentações orais em causas de impacto institucional.[4]
A reforma tributária é um caso exemplar da intensidade e complexidade com que se exerce o lobbying em contextos de alta densidade normativa e grande potencial redistributivo. Embora o processo legislativo tenha sido marcado por audiências públicas e por uma pluralidade de contribuições formais, não são conhecidos os dados sobre a articulação política que ocorreu em espaços opacos, como reuniões privadas com parlamentares, eventos custeados por setores impactados pela reforma e negociações realizadas à margem da deliberação pública.
Soma-se a esse quadro o fenômeno da “porta giratória”, em que ex-agentes públicos passam a prestar consultoria sobre temas que anteriormente regulavam, sem qualquer período de quarentena ou obrigação de divulgação de sua nova atuação. Embora tais condutas não sejam, em si, ilícitas, suscitam legítimas preocupações com a moralidade administrativa, a impessoalidade e a transparência — valores constitucionais que informam toda a atuação estatal, nos termos do artigo 37 da Constituição.
A ausência de regulação específica para o lobbying, nesse contexto[5], acarreta riscos concretos à igualdade de acesso aos tomadores de decisão. Em um Estado Democrático de Direito, não basta garantir a liberdade de petição e de associação; é necessário assegurar que tais direitos possam ser exercidos em condições de paridade[6], sem que os recursos financeiros ou a proximidade institucional determinem, de forma decisiva, o grau de influência de cada ator sobre a formulação de políticas públicas.
A opacidade das interações entre agentes privados e autoridades públicas compromete o controle social e deslegitima o processo decisório, especialmente em matérias que afetam toda a sociedade, como o sistema tributário.
É nesse ponto que a regulamentação do lobbying assume papel estruturante para a consolidação democrática. Longe de restringir direitos fundamentais, uma legislação que discipline a representação de interesses amplia a efetividade das garantias constitucionais ao estabelecer critérios de publicidade, registro e accountability para as interações entre lobistas e agentes públicos.
Trata-se de medida que fortalece a confiança nas instituições, promove a igualdade de oportunidades na formação da agenda pública e permite ao cidadão comum conhecer quem são os principais interlocutores do poder. Ao contrário do senso comum, a regulação do lobbying não criminaliza a atividade, mas confere-lhe contornos jurídicos nítidos, diferenciando-a de práticas ilícitas e assegurando a observância dos princípios da legalidade, moralidade e transparência administrativa.
A experiência internacional demonstra que países com democracias consolidadas adotaram, há décadas, marcos normativos para disciplinar o lobbying, não como reação moralista à influência privada na política, mas como instrumento de reforço da governança democrática.[7]
No Brasil, a regulação da atividade deve partir da premissa constitucional de que a representação de interesses é legítima, mas que sua prática exige parâmetros formais, especialmente em contextos de alta complexidade institucional e assimetrias de poder.
Nesse sentido, a recente reforma tributária, que catalisou a atuação dos mais diversos setores econômicos, deve ser compreendida não apenas como um avanço em matéria fiscal, mas também como um ponto de inflexão no debate público sobre o lobbying. Ignorar essa dimensão é perpetuar um modelo de deliberação política marcado pela seletividade no acesso, pela informalidade nas interações institucionais e pela ausência de mecanismos de fiscalização.
Em síntese, a regulamentação do lobbying não é uma pauta menor ou periférica. É, cada vez mais, um imperativo jurídico e democrático. Sua ausência enfraquece o princípio republicano, compromete a moralidade administrativa e acentua as desigualdades no processo decisório.
Sua institucionalização, ao contrário, reforça a Constituição, confere previsibilidade às relações entre Estado e sociedade e pavimenta o caminho para uma democracia mais substancial, transparente e responsiva.
[1]Acessado em 24/04/2025: https://anuarioorigem.com.br/wp-content/uploads/2025/03/Anuario_2024_web.pdf
[2] Nesse sentido, ver FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: Formação do Patronato Político Brasileiro. 5ª ed., São Paulo: Globo, 2012.
[3] Para essa diferenciação analítica, ver: GONTIJO, Conrado Almeida Corrêa. Lobby: estudo de Direito Comparado e necessidade de regulamentação do instituto no ordenamento jurídicos. São Paulo: Marcial Pons, 2020. p. 217/247.
[4] GAZOTTO, Gustavo Martinelli Tanganelli; O lobby e sua regulamentação no Brasil: entre influência privada e interesse público. 2021. 215 f. Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, 2021. p. 50.
[5] Não se ignora a alteração realizada no Estatuto da Advocacia, Lei nº 8.906/1994, por meio da Lei 14.365/2022, a qual inclui no referido texto legislativo o art. 2º-A para dispor que “o advogado pode contribuir com o processo legislativo e com a elaboração de normas jurídicas, no âmbito dos Poderes da República”, bem como microrregulações de órgãos da administração pública federal. No entanto, em comparação com regulações do Lobbying em outros países, como os Estados Unidos, e em atenção as recomendações da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (“OCDE”) para regulação da matéria, esse dispositivo é meramente autorizativo e não contempla aspectos essenciais de transparência, como cadastro de profissionais, fornecimento de informações de financiadores da atividade, pautas e projetos que pretendem influenciar etc. Ver: UNITED STATES OF AMERICA. House of Representatives. Lobbying Disclosure Act District of Columbia, 2017. Disponível em: https://lobbyingdisclosure.house.gov/amended_lda_guide.html. Acesso em 21. de abril de 2024; ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO – OCDE. Lobbying in the 21st century– Transparency, integrity and access. 2021: OECD Publishing.
[6] Como retrata o infográfico elaborado pela Câmara dos Deputados sobre a regulação do lobby2, o Brasil carece de mecanismos que assegurem isonomia e publicidade também nos contatos extraoficiais — reuniões reservadas em gabinetes, eventos privados com autoridades, viagens custeadas por setores interessados e encontros que escapam ao escrutínio público. Acessado em 24/04/2025: https://www.camara.leg.br/internet/agencia/infograficos-html5/regulacao-de-lobby/index.html
[7] ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO – OCDE. Lobbying in the 21st century– Transparency, integrity and access. 2021: OECD Publishing.