Por Eurico Marcos Diniz de Santi e Nelson Machado
Dizem que as pessoas jurídicas não têm coração, sendo meros biombos artificiais que simulam pessoas físicas. No entanto, para viabilizar a reforma tributária – cogitada sem sucesso há pelo menos 30 anos – foi fundamental o envolvimento de empresas que financiaram, por mais de 10 anos, projeto ambicioso para implantar no Brasil um sistema moderno de tributação sobre o consumo, com o objetivo de atingir, no médio prazo, melhorias no ambiente de negócios, segurança jurídica e efetuar uma transição de sistemas sem aumento de carga tributária.
O projeto teve início em 2014, no Núcleo de Estudos Fiscais da FGV-SP, com o projeto “Nossa Reforma Tributária”, seguindo a linha de pesquisa “Direito & Desenvolvimento” da FGV Direito SP. Em 2015, foi criado o Centro de Cidadania Fiscal (CCiF), think tank imparcial e independente com o propósito de buscar as melhores práticas da experiência internacional do Imposto sobre Valor Agregado (IVA), presente em 170 países.
A parceria inédita, entre o setor privado, a academia e o setor público, possibilitou o caminho para que fossem desatados os nós do complexo emaranhado de normas, procedimentos e leis vigentes. O esforço deu resultado e, após diversas idas e vindas, alcançou projeto de simplificação na cobrança do imposto sobre o consumo, aprimorado junto aos auditores fiscais e outros profissionais que contribuíram para o desenho da Proposta de Emenda Constitucional, que foi denominada PEC/45. Dessa forma, o que parecia inalcançável, tornou-se realidade.
A ideia que permeou todo o desenvolvimento do “Nossa Reforma Tributária” tinha por eixo que o texto final seria escrito pela sociedade. E isso se deu após constantes negociações e incontáveis debates com toda a ordem de interlocutores. O novo sistema de tributação do consumo, a ser implementado gradualmente nos próximos anos, conta com o apoio dos 27 Estados da União, da Confederação Nacional de Municípios e da Frente Nacional de Prefeitos, que representam praticamente todas as cidades brasileiras.
Foi um processo lento, iniciado no governo de Dilma Rousseff, passou pela gestão Michel Temer, mas ganhou impulso com o deputado federal Rodrigo Maia, então presidente da Câmara, por meio da apresentação da PEC/45, que resultou na Emenda Constitucional 132, alterando o Sistema Tributário Nacional (STN). Uma resposta à ação gestada pela sociedade civil, encampada pela Câmara dos Deputados e aprimorada pelo Senado Federal, inaugurando novos princípios constitucionais ao STN: simplicidade, transparência, neutralidade, cooperação e preservação do meio ambiente.
Desde a primeira nota técnica do nosso grupo em 2016, ficou estabelecido que o sistema deveria ser simples para quem recolhe e transparente para quem paga, ou seja, o consumidor final. A neutralidade tributária tornou-se o princípio central. A partir dele, quem definirá a nova geopolítica e nova economia do Brasil será a distribuição eficiente de capital e trabalho, não mais subordinada aos incentivos fiscais e interesses das cerca de 5.700 administrações tributárias, que, por vezes, pautadas por benefícios imediatos de cada ente, distanciam-se do interesse nacional.
O novo modelo tributário põe pedra e cal na “guerra fiscal”, determinando que a tributação será arrecadada e pertencerá no destino. O Imposto de Competência Estadual e Municipal (IBS), administrado pelo Comitê Gestor a ser implantado, vai para o Estado e o Município onde ocorre o consumo, eliminando distorções alocativas e inaugurando, pela primeira vez na história do País, um novo e efetivo modelo institucional de federalismo cooperativo. Uma das novidades é a adoção de uma única Lei Complementar, extinguindo o vasto e obsoleto arcabouço legislativo espalhado por legislações federais, estaduais e municipais. Passam a ser revogadas, assim, milhões de normas sobre ISS, 27 leis e regulamentos do ICMS, além das legislações de PIS, Cofins e IPI.
A gestão do novo sistema dá autonomia ao Comitê Gestor, composto por representantes de Estados e municípios, e permite que defina a alíquota sobre a base consumida. O novo sistema será altamente tecnológico, com plataforma própria que automatizará a incidência de créditos e débitos tributários. A transição será gradual, e o desenho operacional foi calibrado para manter a carga tributária estável, arrecadando os mesmos R$ 1,2 trilhão recolhidos atualmente. Embora a alíquota pareça alta, ela reflete a carga tributária já existente, mas que, agora, surge no processo de forma clara e simplificada. A revogação de milhares de legislações tornará o sistema funcional, com regras uniformes e coerentes alinhadas estritamente ao princípio da legalidade.
Pessoas jurídicas não existem sem pessoas físicas. No caso da construção do projeto “Nossa Reforma Tributária”, concebido na FGV/SP e CCif, e contando com a aposta de líderes empresariais no futuro do Brasil, requereu a coragem para se impulsionar um projeto inédito. Semanalmente na última década, diretores jurídicos e representantes técnicos das empresas AmBev, Banco Itaú, Braskem, Carrefour, Coca-Cola, EBANX, Huawei, Natura, Mercado Livre, Raízen, Rede D’Or, Souza Cruz, Vale, Votorantim, Volkswagen e 99Táxis reuniram-se buscando soluções republicanas para a reforma da tributação brasileira. A boa notícia é que, ao final deste processo, o Brasil vai dispor de um modelo de “IVA 5.0”, moderno, eficiente e que tenderá a se tornar referência internacional de tributação sobre o consumo.
https://www.estadao.com.br/opiniao/espaco-aberto/reforma-tributaria-da-obsolescencia-a-modernidade